Introdução a Terapia de Regressão Integrativa: O Imaginário Simbólico na Abordagem Regressiva e o Lamento dos Mortos




A Técnica de Regressão Integrativa (TRI) é um método de regressão de memória que se utiliza do imaginário simbólico a fim de ajudar a pessoa a ressignificar ou reprogramar as suas memórias, crenças, emoções e o seu inconsciente.

Partindo de uma visão junguiana e transpessoal, a técnica pode auxiliar a promover a reestruturação de vários parâmetros do inconsciente, do comportamento e da personalidade humana, abrangendo a linguagem dos arquétipos e dos símbolos para reconfiguraçao ou remissão de padrões psicológicos dissociativos, transtornos psíquicos, bloqueios, traumas e a sua superação.

Isso decorre do fato de que nesse vasto panorama do campo de estudo, pesquisa e vivência da prática clínica e terapêutica sobre a genealogia humana e sua historicidade social desde uma perspectiva mítica, psíquica, simbólica e arquetípica, a técnica de regressão de memória se apresenta como um método de tratamento arrojado que pode integrar tanto o psicológico, quanto o espiritual ou o transcendente. Nesse entretempo possibilita ao ser humano a ampliação de sua autoconsciência; seja através de uma sensibilização progressiva de seu ser e estar no mundo, seja ajudando-o a desenvolver cada vez mais amor e sabedoria em sua vida e, em última instância, promovendo a reconexão a sua essência, ao seu centro ou presença, a fim de afastar-se cada vez mais dos padrões polarizados de sofrimento em direção à saúde e a plenitude.

A regressão caracteriza-se assim como um recurso psicoclínico que faz parte do processo de psicoterapia de orientação mais transpessoal ou espiritual, juntamente com outras técnicas integradas. A experiência clínica indica que a regressão de memória quando bem utilizada pode ser considerada uma ferramenta bastante efetiva dentro do universo das psicoterapias. Ao meu ver, é uma grande vantagem da técnica ela contemplar duas dimensões dentro de um mesmo processo, uma psicológica e a outra espiritual, pois essa interconectividade traz amplitude, profundidade e múltiplas possibilidades a quem deseja autoconhecer-se. Logo, trata-se de uma abordagem psicoespiritual excepcionalmente valiosa para quem busca aprender a modular as emoções, aperfeiçoando também a ética e a espiritualidade, na mesma medida em que estimula a abertura da percepção interior, o desenvolvimento do sentir ou da inteligência emocional e o despertar da sabedoria intuitiva que todos têm dentro de si.

Além disso, trata-se de um método terapêutico bastante eficiente para o descondicionamento psicológico e que pode auxiliar a explorar e liberar bloqueios emocionais e complexos psíquicos, tanto quanto outras terapias, mas com a vantagem de alcançar mais a fundo e certeiramente as recordações subconscientes, revelando esquemas negativos intrincados até os traumas mais difíceis de se acessar. O psicoterapeuta se dedica em ajudar seus pacientes com seus bloqueios emocionais e mentais e em como se libertar deles; já a real natureza dessas lembranças é uma incógnita a ser definida pela vivência, pela interpretação e pelo sentido da experiência, estabelecidos por cada experimentador.

Isso porque existem muitas tentativas explicativas para a fenomenologia regressiva, ainda assim, é importante ressaltar que a perspectiva de “vidas passadas” é apenas uma dentre as várias possibilidades de interpretação dos relatos das regressões. Como diz Roger Walsh, sabe-se que “os pressupostos formam hipóteses sobre a natureza de uma realidade; quando se reconhece isso, os pressupostos funcionam como hipóteses; quando disso se esquece, eles funcionam como crenças”.

Integrando psicologia e neurociências, o doutor Júlio Peres (2009) que se utiliza de um método terapêutico de recuperação de memórias em seu trabalho clínico, adverte que é um erro descartar memórias reprimidas, pois mesmo que não se possa afirmar que elas sejam inteiramente factuais ao serem relembradas, ainda assim, representam uma vivência "afetiva" relativamente verdadeira de busca de sentido ou significado nas experiências das pessoas e em acordo com a sua capacidade de reconstrução e compreensão. Como afirma o Dr. Peres em sua excelente obra Trauma e Superação:

“Squire e Kandel apontam que lembrar compreende a reconstrução de uma trama coerente por meio de fragmentos disponíveis. Ao evocar uma memória, as pessoas incorrem em erros criativos, desconsiderando ou apagando algumas partes da história, fabricando outras partes e, em geral, tentando reconstruir a informação de modo que faça sentido. Quase sempre a memória funciona pela extração de um significado, não mediante a retenção de um registro literal do que aconteceu. (...) Mesmo que uma memória carregada de emoção não forneça um retrato completamente factual do que aconteceu da experiência passada, o conteúdo configurado como memória é uma representação completamente genuína dos referenciais internos do individuo. (...) Quando os profissionais dispensam as memórias recuperadas dos indivíduos como enganos ou fantasias, podem aumentar as dificuldades de seus pacientes.”

Ou seja, padrões comportamentais disfuncionais e condicionados podem ser mudados a partir da reconfiguração eficiente de suas estruturas psicodinâmicas inconscientes e independente da crença que cada pessoa queira atribuir a sua vivência. O fato é que a regressão possui “eficácia simbólica” conforme conceituada por Claude Lévi-Strauss (1975), também podendo ser interpretada a partir do conceito de “imaginário social-histórico” de Cornelius Castoriadis (1995), ou do “imaginário cultural” de Gilbert Durant (2004), discípulo de Gaston Bachelard (2006) e sua “cosmovisão” que incluía o "imaginário poético" dos “símbolos, mitos e arquétipos” e sua capacidade de recriação, de recomeço, de criação simultânea do ser, da língua e do mundo.

Esse imaginário intuitivo também pode ser encontrado na hermenêutica espiritual tal como descrita por Henry Corbin (2016), onde a importância do imaginário é primordial enquanto dimensão entremundos, a que ele denominou mundus imaginalis, e que se produz entre a percepção sensível e o pensamento racional. James Hillman, psicólogo junguiano, assinalava a esse respeito que “a memória é simplesmente imaginação, com uma ideia de passado atrelada a ela.” E Dean Koontz diz isso de outra maneira ao expor que “intuição é ver com a alma”, de modo que podemos constatar nessas expressões as sutis interconexões entre intuição, imaginação e memória, enquanto meios hábeis de captarmos dimensões de espiritualidade e transcendência.

Henry Corbin (1903-1978) foi um filósofo e estudioso da obra orientalista de Ibn Arabi, pensador sufi da Andaluzia. Corbin propõe que os sufistas indicavam a existência de um plano intermediário entre a percepção dos sentidos e a intelectual, um plano intramundos, seja de mundos elevados ou de submundos e que seria próprio da “imaginação ativa” dar acesso a essas outras regiões e realidades alternativas, pois nos abriria ao intermundo, ao mundus imaginalis, um mundo intermediário situado entre o universo apreensível pela percepção intelectual e o universo das percepções internas que nos afiguram intuições, acontecimentos visionários e revelações desse intramundo.

O imaginário ativo seria aquele que permite a nossa dimensão simbólica de linguagem lançar pontes, estabelecer elos entre o eu e outras dimensões. Pois, é o exercitar dessa inteligência simbólica que nos permite reencontrar o sentido do mistério, o acesso de dimensões de profundidade que evocam estados de alma. Esse imaginário metafísico é o que nos impulsiona ao longo da história a recriar os mitos, a reencenar os arquétipos, movimentados a partir deste intermundo, aqui compreendido como um sistema cosmológico de arrebatamento íntimo profundo. Essas paragens imaginadas seriam como espaços entremundos que nos permitem intuir, vislumbrar o âmbito espiritual que nos envolve e nos move intimamente. Seria o espaço axial ou central também conhecido nas tradições como Axis Mundi, ou Centro, onipresente em várias culturas, e que representa o lugar de interligação entre os reinos terreno e espiritual, destinado à manifestação do subtil e à comunicação entre as dimensões, um espaço de intersecção entre diferentes níveis de consciência e de realidade.

O monge e escritor Jean Yves Leloup, reiterando o trabalho de Corbin, explica que o mundo imaginal é um mundo intermediário, no qual “o corpo se espiritualiza e o espírito se corporifica”. Para ele, mesmo que a alma não possua uma forma específica, os arquétipos, os sentimentos, os desejos, as histórias e as lembranças mais profundas personificam-se, projetam-se e assumem a forma de imagens, acessíveis através da imaginação ativa. Ao abrirem-se ao mundo imaginal, as pessoas podem encontrar novos sentidos e singularidades, indo além das literalidades racionais, elaborando seus dilemas existenciais através de sua imaginação ativa. Leloup em referência a Corbin, expressa que o amplo desconhecimento sobre o mundus imaginalis faz parte do atual cenário de degeneração pela tirania da razão e seu vazio de certezas, e que por fim, leva o ser humano a crise e a falta de sentido, ao desespero silencioso e a apatia, típicas da contemporaneidade, mas que podem sim ser superados por indivíduos interiorizados, abertos a dimensões mais sutis de sua existência.

Ou noutros termos, conforme a nossa compreensão e proposição psicoterápica, através do uso eficiente do imaginário, dos referenciais internos e das crenças mais funcionais dos pacientes em favor do seu processo terapêutico e da reinvenção de si mesmos a fim de promover a saúde mental.

Isso posto, C.G. Jung já nos dizia que o legado das Tradições espirituais da humanidade há muito tempo nos orienta sobre o que precisa ser feito. Já sabemos o que precisamos fazer. O que não sabemos é como fazê-lo. E é aqui que se dá o encontro da religião antiga com a ciência psicológica moderna, pois é pela prática da autoconsciência e seu experimentar sistemático que podemos converter a palavra em ação, a fim de desenvolvermos uma espiritualidade genuína.

Tanto é assim que nesse intermundo prático entre o psicológico e o espiritual, o historiador da obra junguiana Sonu Shamdasani interpreta que o Livro Vermelho (2015) de Jung é a sua versão para o Livro Egípcio dos Mortos e nesse vetor explora as várias descidas do psiquiatra suíço ao submundo do inconsciente, numa tentativa de ouvir os antepassados através de seu imaginário simbólico. Segundo conclui Sonu Shamdasani, coautor com James Hillman de O Lamento dos Mortos: A Psicologia depois de O Livro Vermelho de Jung (2015), a menos que possamos chegar a um acordo com os mortos, repetiremos suas tramas, suas más resoluções, ainda que sob novas circunstâncias. Sonu lembra que Jung afirmava que habitualmente pensamos que as figuras ou complexos que vivemos em nossos sonhos, por detrás de nossos comportamentos e até na imaginação são resultado de nós mesmos, porém, a verdade é que nós somos o somatório dessa progênie.

Então, a tarefa da psicoterapia seria integrar essas figuras ancestrais fantasmáticas que “assombrariam” psiquicamente as nossas vidas como ecos ressonantes do passado. Como demonstra no Livro Vermelho, Jung desce no interior de suas profundezas através de suas autoexperimentações e encoraja essas vozes internas, sejam figuras de sombra ou numinosas, colocando-as para falar, para expor seus dilemas, revelando suas mensagens e lições. É uma entrada através da imaginação ativa na ancestralidade humana, no entremundo dos mortos, e que ainda se fazem presentes em imagens, complexos, sonhos, movendo-se em nossas neuroses, culturas e padrões subliminares, vivendo através de nós.

Nesse amplo cenário, o papel de nossos pais a quem atribuíamos à causa de muitos dos nossos males é bem mais limitado e modesto, pois eles também são o resultado dessa complexa ancestralidade, desses condicionamentos predecessores, dessas forças modeladoras. A verdade, como bem expõe essa dupla junguiana é que nossos ancestrais são muito mais do que a relação “papai, mamãe e eu” e que a nossa própria árvore genealógica. Ou como bem diria o próprio C.G. Jung, numa daquelas que é uma das minhas frases favoritas do psiquiatra suíço: “Não somos de hoje nem de ontem, somos de uma era imensa”.

É por esse motivo que saliento sobremaneira através da regressão de memória a importância da ancestralidade individual, coletiva e cósmica que reconecta o ser a sua essência e o interconecta a todos os seres. A nossa maneira de habitar o mundo é uma questão de ser, tanto ontológica, quanto ética ou moral, pois irradiamos o nosso universo psíquico através de nossos pensamentos, sentimentos, intenções, sonhos, gestos, ações que têm impacto sobre o meio circundante e o universo a nossa volta.

O fluxo da vida nos impele ao desenvolvimento da habilidade de esvaziar-nos e preencher-nos constantemente, transformando o nosso ser através das mesmas memórias que se ignoradas nos soterram no passado. E também, pelo silenciar, aquietar-nos, num processo de recriação e de renovação permanentes. O passado não é o problema. O problema é a nossa relação com o passado, a nossa inconsciência ou apego a ele. O passado é sempre presente. O passado e o futuro encontram-se no presente.

Sendo assim, toda a mudança interior nesse propósito se dá através de uma anamnese profunda ou transpessoal, uma arqueologia interior sobre a nossa ancestralidade cósmica e que nos permite recontar a nossa própria existência à luz de uma consciência presente que a cada etapa da espiral evolutiva pode se tornar então, mais inteira, mais plena, liberta e iluminada.


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Bibliografia:


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WALSH, Roger; VAUGHN, Frances (Orgs.). Além do Ego - Dimensões Transpessoais em Psicologia. 10ª ed., São Paulo, Ed. Cultrix, 1997.
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DURANT, Gilbert. O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofa da imagem. 3ª Edição, DIEFEL, Rio de Janeiro, 2004.
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CORBIN, Henry. Creative Imagination In The Sufism Of Ibn Arabi. Editora: Princeton University Press. Edição ou reimpressão: abril de 2016
LELOUP, Jean Yves. Em sua fala inspirada em Henry Corbin para apresentação do evento Encontro Imaginal: O Resgate da Alma do Mundo. Ocorrido de 4 a 7 de setembro de 2020 no formato online e com vários conferencistas: www.encontroimaginal.com.br
PERES, Júlio. Trauma e Superação: O que a Psicologia, a Neurociência e a Espiritualidade ensinam. Ed. Roca, SP, pg. 150, 2009.
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SHAMDASANI, Sonu & HILLMAN, James. O Lamento dos Mortos – A Psicologia depois de O Livro Vermelho de Jung. Editora Vozes, 2015.

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