Todo o trauma não elaborado que levamos conosco nos divide e fragmenta, deixa pedaços de nós pra trás, deixa partes nossas presas a um enredo dramático passado e suas desafeições. Todo o TRAUMA gera uma dissociação, ruptura, nó ou separação no fluxo da consciência e traumas sucessivos geram uma fragmentação generalizada em vários padrões, subpersonalidades ou estratos de memórias recalcadas no inconsciente.
A dissociação devido a memória traumática reforça a cisão razão e emoção, a falta de coordenação entre as faculdades cognitivas e emocionais. Essa ruptura também hipertrofia a razão como defesa ao trauma e atrofia o conjunto intuição-emoção-sentimento-coração, produzindo paralelamente no nível neural o descompasso entre o arquicortex (cérebro mamífero-reptiliano) e o neocortex humano que automatiza a razão como criada obediente ao cérebro visceral-reptiliano, primitivo, autoritário e replicante.
A desarticulação entre a razão e a emoção gera uma racionalidade instrumental, facilmente doutrinável e que favorece a razão tecnocrática e seu sistema de demência automatizada no ser humano e a sua degeneração na história. O que leva a recorrente esquiva das guerras não vistas dentro da gente e que se projetam em guerras, polarizações, tiranias e bárbaries em todas as épocas, os sistemas totalitários de ontem e do presente, as distopias nossas de cada dia.
É o recorrente pacto de Fausto por progresso e técnica em detrimento ao sentir e ao amor. É o que leva as pessoas a fingir demência mesmo diante de todos os sinais e sintomas deletérios que um sistema dominante e suas narrativas de ordem lhes imputem como realidade.
É o que leva muitos a atuar nas falsificações de bem comum reeditadas ao longo da história e que estão no âmago de todo e qualquer sistema totalitário que se forma a partir do hiper-racionalismo e da manipulação das emocionalidades, ou seja, a falta de integração entre razão e emoção, a dissimulação das narrativas, sua propaganda e discrepância com os fatos conforme realmente são vividos pelas pessoas na sua vida cotidiana.
O que chamo de sistema de demência automatizada é um conjunto de programações do inconsciente coletivo e sua dominância por forças do lado sombrio da existência. São algorítimos de demência porque visam o esquecimento da totalidade do ser, nos prendendo a dissociação interna e a fragmentação que levam ao domínio das sombras, ao caos e ao sofrimento. É algo automatizado porque visa nos tornar robôs biológicos, pessoas programáveis e servis a um sistema (doutrinadas por ismos). Logo, indolentes quanto ao próprio lado sombra e desconectadas de sua essência humana. Ou ainda, pessoas desligadas da Fonte Primordial e da verdadeira função transcendente, o religare autêntico enquanto religação ao sagrado que é o verdadeiro sentido da religião e seu propósito mais nobre.
Ao refletir sobre a eclosão da Primeira Guerra Mundial das duas que viveu em seu tempo, o psiquiatra suiço Carl Jung foi incisivo quanto a necessidade do ser humano conhecer a si mesmo e adentrar as esferas do seu inconsciente, tanto quanto atuar interiormente sobre os pesados fardos pessoais e sociais decorrentes desse típico desdém automatizado pela cultura materialista, e que leva muitos a reproduzirem em suas vidas as terríveis programações do inconsciente coletivo. Como afirma:
“Nada mais apropriado do que os processos psicológicos que acompanham a guerra atual – notadamente a anarquização inacreditável dos critérios em geral, as difamações recíprocas, os surtos imprevisíveis de vandalismo e destruição, a maré indizível de mentiras e a incapacidade do homem de deter o demônio sanguinário para obrigar o homem que pensa a encarar o problema do inconsciente caótico e agitado, debaixo do mundo ordenado da consciência. Esta Guerra Mundial mostra implacavelmente que o homem civilizado ainda é um bárbaro. Ao mesmo tempo, prova que um açoite de ferro está à espera, caso ainda se tenha a veleidade de responsabilizar o vizinho pelos seus próprios defeitos. (…) Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo. Em tempo algum, meditar sobre si mesmo foi uma necessidade tão imperiosa e a única coisa certa, como nesta catastrófica época contemporânea. Mas quem se questiona a si mesmo depara invariavelmente com as barreiras do inconsciente, que contém justamente aquilo que mais importa conhecer.” [C.G. Jung no prefácio de A Psicologia do Inconsciente 7/1 – Obras Completas, Küsnacht-Zurich, dezembro de 1916]
Para ajudar os indivíduos a superar essas programações-padrão, Jung numa aproximação marcante com a terapia de regressão, nos instrui sobre a importância da integração da sombra através de incursões na mente inconsciente pela via do imaginário simbólico enquanto método de cura para o dualismo íntimo não resolvido pela razão e que devido a sua tendência a instrumentalização social apenas reforça a divisão e a fragmentação do psiquismo humano, a falta de coordenação entre as faculdades racionais e emocionais.
Dito de outro modo, a própria razão não é suficiente para resolver seu impasse com a emoção, pois ela é parte do problema, dessa dicotomia aflitiva; além de ser uma via extremamente vulnerável à modelagem comportamental e que favorece ao controle social por terceiros. Ela pode ser tão enganosa a ponto de levar as pessoas a esbanjar senso de superioridade em sua idiotice ideológica, a fazer parte de coletivos que operam como seitas e a perverter até mesmo a ciência. Por isso é preciso acionar outras funções da psique humana, tal como a intuição e o imaginário simbólico, dentre outras, na busca por maior inteireza no desenvolvimento humano.
Em seu compêndio intitulado Livros Negros – Cadernos de transformação, lançado apenas recentemente e muito tempo após seu falecimento, Jung expõe seus experimentos psíquicos de confrontações entre seu eu e a Alma que num de seus diálogos interiores, então lhe pergunta:
“Queres aceitar o fragmentário, o despedaçado? Queres o trapo em vez da roupa toda, o botão em vez da calça, a vela em vez do sol? Queres o que foi misturado sem sentido, o derretido, o esfarelado?”.
O eu de Jung seguindo o principio de aceitação da Sombra, responde: “Aceitarei, minha alma, o escuro que me dás. Não cabe a mim o direito de julgar e rejeitar. O destino separará o joio do trigo”.
A Alma vai ainda mais a fundo no confronto: “Escuta, então: há aqui embaixo velhas armaduras e equipamentos dos nossos pais, carcomidos pela ferrugem, correias de couro mofadas estão presas neles, hastes de lanças comidas pelos vermes, pontas de lanças retorcidas, flechas quebradas, escudos apodrecidos, caveiras, ossos de homem e cavalo, antigos canhões, catapultas, tochas decompostas, ferramentas de assalto destroçadas – tudo que as batalhas de outrora deixaram no campo. Aceitarás tudo isso?”.
O eu volta a responder que sim. A Alma continua: “(…) Mas encontro coisa pior – fratricídio – assassinato covarde – tortura – sacrifício de crianças – extermínio de povos inteiros – incêndio – traição – guerra – revolução – isso também?
“Isso também, se for preciso. Mas como posso julgar?”, diz o eu.
A alma segue adiante em seu registro de atrocidades: “Encontro epidemias – catástrofes naturais – navios afundados – cidades destruídas – terríveis animais selvagens – fomes – falta de amor das pessoas – e medo – montanhas inteiras de medo.”
“Assim seja, pois tu o dás”. [Extraído dos Livros Negros – 1913-1932 – Cadernos de transformação (2021) de C.G.Jung, compilado por Sonu Shandasani.]
O sentido de aceitação da sombra desfaz rupturas internas enquanto as partes negativas são integradas. As cargas dissonantes são reconhecidas ao invés de ignoradas, a maldade pode então ser redimida como parte do ser total, a ser vista, não recalcada, sob o perigo de continuar a ser projetada nos outros ou em mais tragédias pessoais e coletivas.
O imaginário de Jung também lhe apresentava uma série de visões esféricas ou circulares que ele identificaria depois como mandalas, símbolos de defesa e integração íntima em tempos de guerra interior, bem como de alquimia e transformação ou recriação da mente profunda. Esses símbolos lhe ajudavam na expressão para interpretação e compreensão das revelações da mente inconsciente, o que expandia sua consciência e sabedoria, na mesma medida em que auxiliava a transfigurar a sua sombra.
No entanto, as mandalas seriam apenas um modo dentre muitos outros de expressar essas imagens profundas. O mais importante mesmo é compreender a importância de se acessar esse imaginário interior e dar voz aos vários eus e personagens que habitam a nossa profundidade, muitos dos quais ocultos nas sombras do inconsciente a ser desbravado.
Na terapia de regressão esse acesso intuitivo simbólico é fundamental para a cura, a integração e a inteireza da personalidade que se torna então mais consciente. Isso independe da interpretação que se queira dar a natureza desses eus, se vidas passadas ou padrões do inconsciente coletivo, ou outra outra explicação, não importa.
O que importa é que você carrega esses eus e pode escolher entre viver entregue ao destino dessas programações degradantes, como vítima de seus ardilosos algorítimos, ou então, integrar esse conteúdo sombrio a sua consciência e transformar suas cargas densas e reincidentes em aprendizado de vida, ampliando a sua sabedoria, integridade e capacidade para um amor maior.
Um amor mais autêntico que surge do exercitar da inteireza de ser, do confronto com as raízes e padrões sombrios a ser mudados, bem como, da imersão transformadora rumo a uma personalidade mais abrangente, sábia e regenerada.
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