Nas filosofias religiosas orientais vamos contemplar essa mesma mensagem positiva sobre a sombra no simbolismo da “flor de lótus” nascida em todo o seu esplendor em terreno lamacento, bem em meio ao lodo. Sem ser prejudicada pela lama negrejante de onde brota, ao contrário, dela se utiliza para crescer, nos inspirando a olhar seu exemplo e reconhecer que mesmo em meio aos lugares mais improváveis e obscuros, algo puro e belo pode brotar de nós, nos possibilitando o crescimento.
“Embora sejamos levados a pensar que a sombra contenha apenas escuridão, conforme afirma Jung sua essência é ‘puro ouro’.” (Connie Zweig e Jeremiah Abrams [orgs.] em Ao Encontro da Sombra)
Aliás, para C.G Jung a sombra seria um núcleo inconsciente daquilo que foi reprimido ou herdado do passado, incluindo tendências, imagens, emoções, desejos, memórias e vivências que podem ser considerados incompatíveis e contrários aos padrões sociais, ou ainda, aquilo que consideramos primitivo ou inferior, bem como, o que negligenciamos, podendo nesse sentido também ser fonte de vitalidade, assertividade e criatividade.
Paralelamente, a título de curiosidade, vamos encontrar nos dicionários um conceito de sombra descrito mais do ponto de vista físico: como região escura formada pela ausência parcial da luz, proporcionada pela existência de um obstáculo, ou ainda, pela interceptação da luz por algum tipo de corpo opaco, que é sinônimo do que é denso, lúgubre, obscuro, maculado, pusilânime, lúrido, oculto. O interessante é que a sombra pode mudar de posição conforme a origem da luz e teria natureza ilusória, pois resultaria tão somente da ausência da luz, cumprindo função de fazer contraste.
Assim a sombra nos proporciona a experiência da dualidade tanto em termos físicos, quanto psicológicos e porque não dizer, espirituais. Tudo o que é criado lança uma sombra, pois vivemos uma dialética existencial. E não existiria a experiência (ou a noção) de luz sem sombra, de bem sem mal, de alto sem baixo, e assim por diante; sendo inútil querer ignorar a interdependência desses aspectos.
Inclusive de acordo com preceito encontrado em várias tradições de sabedoria de que “assim como é o macrocosmos é o microcosmos”, o Universo, de modo similar ao ser humano, também tem um lado escuro. Essa faceta misteriosa do Cosmos só pode ser constatada de modo indireto, pois ninguém sabe ao certo o que é, mas a sua existência verifica-se pelo fato das galáxias se manterem juntas gravitacionalmente na escuridade do espaço. Entre as inúmeras hipóteses, a mais aceita atualmente nos círculos científicos é de que 73% do Universo é composto de energia escura, 23% de matéria escura e somente 4% de matéria visível, composta por galáxias, planetas, estrelas, nós, etc. Em suma, 96% do Universo é constituído por uma enigmática escuridão.
Isso dá o que pensar e nos remete ao análogo da vastidão do inconsciente, daquilo que ainda é oculto de nós, ou desconhecido, num espaço de interface entre a cosmogonia e a ontologia.
Nesse preâmbulo ontológico do ser ao vir-a-ser, bendita sombra essa que contém por nós todas as nossas negatividades, tudo o que negamos, tudo o que não queremos ver em nós mesmos, nem sentir, cada pedacinho de desamor, de auto repulsa, todo o mal que ignoramos, nos polarizando, até estarmos dispostos a uma profunda revisão de consciência e ao gradativo acolhimento do nosso lado escuro.
Nesse preâmbulo ontológico do ser ao vir-a-ser, bendita sombra essa que contém por nós todas as nossas negatividades, tudo o que negamos, tudo o que não queremos ver em nós mesmos, nem sentir, cada pedacinho de desamor, de auto repulsa, todo o mal que ignoramos, nos polarizando, até estarmos dispostos a uma profunda revisão de consciência e ao gradativo acolhimento do nosso lado escuro.
Portanto, nós seres humanos num certo sentido também somos carentes e sofremos pela falta de aceitação da nossa própria sombra, pois sem ela vivemos divididos, incompletos, dissonantes, como antípodas de nós mesmos. Sem a sombra que dá relevo a nossa luz, abdicamos de nossa inteireza, pois negar a sombra, é também negar a si a possibilidade de uma luz ampliada pela lucidez transfigurativa que advém da integração do conflito dos opostos dentro de nós. Essa contraposição sombria tem influência sobre as nossas vidas, quer queiramos ou não, atuando como parte constituinte e necessária ao nosso crescimento, sendo tudo aquilo em nós e na nossa natureza profunda, até inferior ou primitiva que se opõe ao amor e que ao ser transformado, como na analogia da flor de lótus nascida na lama, pode se tornar amor.
Assim, a jornada de autodescoberta rumo à inteireza se dá quando corajosamente aceitamos sentir, mesmo o que é negativo à primeira vista, para poder transformar e crescer. É quando reconhecemos que há sempre uma mensagem sagrada a ser lida nas dificuldades pessoais, nas relações, nos problemas, nas doenças e nas crises inerentes a nossa condição existencial e que nos oferecem a oportunidade de mudanças e crescimento no amor.
Aceitar a sombra é admitir com honestidade o negativo em nós e abrir espaço a inteireza, a integração dos opostos em nosso interior que concilia a fragmentação do nosso ser e expande nossa consciência, aumentando a nossa sabedoria e a nossa capacidade de amar, incluir e solidarizar.
“No coração da sombra existe a luz. E no coração da luz existe a sombra. A experiência do ser é a experiência do círculo que mantém os dois juntos.(…) Tornar-se adulto é passar da idade dos contrários para a idade do complementar, para um outro modo de olhar as coisas. (…) Se em vez de rejeitar ou negar alguns elementos de minha vida obscura, sou capaz de acolhê-los, torna-me-ei mais inteiro.” (Jean Yves Leloup em Além da Luz e da Sombra)
Em contrapartida, quanto mais a negamos a sombra, mais retroalimentamos nossas profundas carências e desarranjos mentais e emocionais que carregamos num nível inconsciente, nossas psicopatologias, que impressas no corpo, tornam-se doenças e manifestas na vida, atraem infortúnios ou nos mantém débeis para enfrentar as adversidades.
Pelo que percebo em geral a dificuldade de aceitação da sombra decorre da não aceitação do mal na vida como uma responsabilidade também pessoal, daquilo que tendemos a ver fora e a não reconhecer dentro de nós.
“Se entendemos então que o mal habita a natureza humana independentemente da nossa vontade e que ele não pode ser evitado, o mal entra na cena psicológica como o lado oposto e inevitável do bem. Essa compreensão nos leva de imediato ao dualismo que, de maneira inconsciente, se encontra prefigurado na cisão política do mundo e na dissociação do homem moderno.” (C.G. Jung em Presente e Futuro)
Tenho acompanhado ao longo desses anos o quanto é difícil para as pessoas de maneira geral, até mesmo aquelas que se dizem mais espiritualizadas, o confronto com as suas sombras. Impressiona como almejam evoluir sem um trabalho sério, sistemático e mais aprofundado a esse respeito e como podem cair fácil em armadilhas sombrias sem sequer se darem conta, acreditando estarem muito avançadas ou bem resolvidas em seu caminho espiritual, de luz, de cura, ou como queiram chamar.
Quando dotadas de intelecto privilegiado então, nem se fala, mais sofisticados podem ser seus modos de defesa e auto-engano. “Quanto mais inteligente e culto for alguém, tanto mais refinado é o modo que emprega para mentir a si mesmo.” (C.G. Jung em Desenvolvimento da Personalidade)
Mais preocupante ainda na busca espiritual é quando as pessoas se imaginam isentas e protegidas da sombra pelo fato de estarem seguindo algum tipo de tradição, linhagem, mestres, gurus, metodologias da moda, instituições famosas, personalidades ilustres, movimentos eco-politicamente corretos, comunidades nova era, etc., como se isso por si só lhes desse alguma garantia, imunidade ou salvo-conduto contra o lado sombrio. É justamente o oposto, onde há mais busca pela luz, sempre vai haver mais sombra a ser trabalhada e nem sempre nesses lugares, conforme seguidamente pode-se constatar, vai haver a disposição, a orientação ou até o suporte apropriado para um trabalho integrativo das sombras de cada um.
Ocorre que muitas vezes as pessoas buscam a espiritualidade, o autoconhecimento ou a cura de maneira ingênua, deslumbrada ou idealizada demais sem perceberem os muitos perigos e as armadilhas em que podem estar se metendo em sua ânsia e imediatismo por soluções. Muitos têm altas pretensões mas pouca disposição para o esforço (ou para aprender a discernir entre o esforço e o não-esforço). A maioria quer a luz sem ter de se comprometer em encarar a sombra. O que resulta disso é uma sombra que vai vir disfarçada de luz para agradar, num envolvente simulacro de luz, um ardil, uma luz ilusória, idílica, mistificada, adulterada pela insistente tendência que temos ao auto-engano.
Alguns relatos no livro Ao Encontro da Sombra de Connie Zweig e Jeremiah Abrams (orgs.) são orientadores nesse sentido e exemplificam bem o observado acima. De modo equilibrado, sem invalidar os méritos dos movimentos abordados ou de seus proponentes, essa obra retrata várias facetas sombrias da busca espiritual inclusive no ponto de intersecção entre o oriente e o ocidente naquilo que muitas vezes é negado ou passa despercebido por muitos de seus adeptos.
Se no ocidente o uso excessivo da razão trouxe-nos a tendência a polarizar a realidade, no oriente, há certa tendência a se minimizar a importância do trabalho psicológico de base em prol de uma via contemplativa mais direta para além das polaridades. Tanto a tendência ao racional típica no ocidente, quanto a tendência mais contemplativa típica no oriente, bem como, seus entrecruzamentos mais contemporâneos tendem a subestimar e a querer escamotear o lado sombra.
Em todos esses casos a sombra reclama consideração e sempre apronta poucas e boas para estupefação dos implicados. Afinal, a dimensão racional é necessária, mas insuficiente, pois podemos usar essa mesma razão para justificarmos nossas negações, nosso desamor, nossas desumanidades, nossas cegueiras. Já uma via direta para a não-dualidade pode ser uma pretensão muito justa, nobre e elevada, mas sem as conversões afetivas da sombra, também pode resultar dentre outros problemas numa queda das “alturas” que se não invalida a “realização”, pode vir a macular dramaticamente o seu compartilhamento, causando enormes estragos individuais e coletivos, não raro, devido a dissociação entre o trabalho psicológico que inclui a personalidade (e seus personalismos e idiossincrasias) e a busca espiritual que deveria ter por meta transcender esses aspectos e não vilipendiá-los.
Pois se a razão divide para conhecer e a contemplação abre espaço ao não-dual, o sentir interliga e o amor une, integra. Todas são funções indispensáveis para o nosso crescimento genuíno e exigem múltiplos modos de desenvolvimento.
Somos seres complexos e evoluir demanda muito trabalho, não há caminho fácil para o nosso aprendizado e quando houver, devemos desconfiar… Pode ser a sombra nos espreitando em mais uma de suas muitas artimanhas sedutoras.
“As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo de maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. (…) Amar também é bom: pois o amor é difícil. (…) talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação.” (Rainer Maria Rilke em Cartas a Um Jovem Poeta)
Quanto mais aceitamos nossas negatividades encarando suas lições, mais nos oportunizamos transformá-las em sabedoria amorosa. A cada etapa, mais amor. A cada estágio, maiores podem ser os obstáculos, pois entre luzes e sombras que se sucedem numa espiral de possibilidades desafiadoras está a graça de vivermos a vida com dignidade. Não fosse assim, seria o tédio, a monotonia e viveríamos inertes, petrificados enquanto a vida é fluxo e movimento. Por isso amar é também estar aberto ao aprendizado nas relações, a modos de exercitarmos a sabedoria, a compaixão e o próprio amor que só se aprende amando, corajosamente amando, na iniciativa do amor que inclui o aclarar de toda e qualquer tendência a espera, a recusa, a oposição ou a desistência de amar que trazemos conosco devido aos nossos condicionamentos passados. Amar, portanto, dá trabalho e é responsabilidade crescente.
“(…) O amor custa caro e nunca deveríamos tentar torná-lo barato. Nossas más qualidades, nosso egoísmo, nossa covardia, nossa esperteza mundana, nossa ambição, tudo isso quer persuadir-nos a não levar a sério o amor. Mas o amor só nos recompensará se o levarmos a sério.” (C.G. Jung em Civilização em Transição.)
Logo, a fim de nos tornarmos seres humanos mais plenos, inteiros e integrados, precisamos de razão e contemplação tanto quanto de apercebimento de emoções, de sentimentos, positivos e negativos, de luz, de sombra, enfim, de amor. Pois, para além da razão, está o que é transracional, o que é transpessoal, o que é sutil e nos sensibiliza, nos religa e humaniza. E ainda mais além: o não-dual, o Vazio Fértil, de onde emana a Presença…
É essa Presença que subjaz tanto as nossas alegrias, quanto as nossas batalhas do dia-a-dia, uma consciência de abertura ao encantamento e a beleza de viver, bem como, a fé e a força para enfrentarmos as contradições, os antagonismos, as incertezas até os mais difíceis testes de impermanência ou transitoriedade da vida.
Nesse transcurso para conciliar os contrários, integralizar os complexos e atender aos diversos requisitos do caminho do amor, podemos nos consorciar as mais variadas esferas de atuação em suas interfaces com a arte, a ciência e a espiritualidade, abrindo-nos a criatividade, aos saberes e a autoconsciência a serem exercitados em nossas relações pelos métodos que dispusermos.
Assim perfazemos nossa jornada existencial estando atentos ao nosso sentir em empreendendo o discernimento sensível entre a ação e a não-ação: a quietude, o silêncio, o repouso no amor, e então de volta a sua prática relacional, amando e sendo amados, exercitando a Presença, despertos para o nosso potencial interior de sabedoria amorosa, de CORAÇÃO e MENTE abertos a aprendizagem na VIDA.
Assim perfazemos nossa jornada existencial estando atentos ao nosso sentir em empreendendo o discernimento sensível entre a ação e a não-ação: a quietude, o silêncio, o repouso no amor, e então de volta a sua prática relacional, amando e sendo amados, exercitando a Presença, despertos para o nosso potencial interior de sabedoria amorosa, de CORAÇÃO e MENTE abertos a aprendizagem na VIDA.
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