As pessoas gostam de discutir e afirmar que algo é científico ou não sem muitas vezes nem considerar o que é ciência de fato, a história da ciência e seus diferentes métodos e filosofias. Falam de maneira simplista em prova e comprovação e repetem bordões aprendidos culturalmente sem humildade alguma diante do que desconhecem e é lugar comum testemunharmos o descarte por vezes leviano dos fenômenos ou de suas hipóteses sem um mínimo de experiência e conhecimento prévio no assunto ou até mesmo o deboche e a desvalorização daquilo que geralmente atenta contra os seus próprios parâmetros de realidade. As pessoas esquecem que seu ponto de vista sobre a realidade não é a realidade, mas apenas um “ponto”, uma experiência de realidade.
E esse tipo de postura ainda é bastante frequente e talvez até mais problemática em pessoas com algum tipo de formação acadêmica e cientifica, principalmente quando não reconhecem que mesmo com todo seu pretenso conhecimento (geralmente especificista) e tipo de formação acadêmico-cientifica não estão isentas de serem limitadas pela sua própria experiência, crenças, valores e ideologias ou mesmo pela sua formação teórico-prática.
Considero esta discussão muito importante para podermos tratar de um tema tão delicado como a espiritualidade na abordagem transpessoal, pois ela se situa entre as crenças tanto cientificas quanto religiosas das pessoas; entre, através e além.
Com esse objetivo em mente, dividi este artigo em duas partes, na primeira, procurei trazer uma visão crítica da ciência moderna e de sua conflituosa relação com a religião, inclusive em seu aspecto histórico, apresentando as contradições de ambas e suas possíveis causas. Na segunda parte, ofereço uma síntese de alguns dos principais pensadores livres e acadêmicos que propõe uma visão mais conciliatória e equilibrada nessa relação, em busca de uma nova epistemologia da ciência onde se torna possível situar a espiritualidade, a transpessoalidade e a própria fenomenologia terapêutica da TRT-Terapia de Revivência Transpessoal em sua interface com a experiencia interior.
Entrementes, é a partir de meu olhar como clínico e psicoterapeuta no trato da dor humana e de suas relações com as crenças religiosas ou cientificas que influenciam as pessoas de modo bastante diverso, que constato frequentemente que a essência deste dilema, do ponto de vista psicológico, é que tanto a ciência, quanto a religião, quando desviadas de princípios éticos sensíveis pelo desenvolvimento de uma afetividade consciente, ou seja, de uma inteligência operativa emocional, ou intuição-contemplativa, ou de saberes sensíveis ou, em última instância, da própria energia evolutiva do amor, tem sido utilizadas, cada uma a sua maneira, como ferramentas de poder e propaganda para a manipulação das massas em direção a interesses egoístas, destrutivos, artificialistas e de minorias dominantes, fechando as pessoas em preconceitos e enclausurando-as em conflitos de ordem íntima e relacional que se manisfestam desde simples intolerâncias, passando por lutas de classes até batalhas e guerras sangrentas entre nações.
O problema, no entanto, não é nem a ciência, nem a religião, mas sim, quando as pessoas envolvidas em suas atividades estão inconscientes de seus impulsos, emoções, sentimentos e ignorando suas próprias sombras pelo viés da razão e do intelecto dissociado de um sentir mais consciente, desviam-se do propósito do amor, acreditando que apenas o seu tipo de ciência ou o seu tipo de religião detém algum tipo de verdade universal. É quando seus membros não admitem ser parte, querendo ser o todo!
Ou seja, o problema são os fanáticos, os radiciais, os sectaristas, os dogmatistas de todos os tipos e em seus mais variados “graus” com suas mentes rígidas, suas sombras a revelia, seus impulsos-emoções-motivações inconscientes e seus corações endurecidos! E esses estão por toda a parte, estando presentes em todas as vertentes e áreas do saber e do conhecimento humano, ou ainda, da vida humana, pois ninguém está isento em algum grau desse primitivo desejo de controle e poder, de possuir partes comportamentais enrijecidas e até de vir a resvalar no autoritarismo-impositivo. Só os ingênuos, os que se desconhecem e ignoram a própria sombra, a polaridade negativa do seu ser, vão acreditar estar completamente livres dessa dialética existencial.
E essa não é uma questão meramente intelectual, pois a razão pode ser utilizada tanto para justificar o bem, quanto o mal, tanto do ponto de vista cultural quanto filosófico, cientifico, religioso, etc. É fato que hoje e ao longo da história temos tido sociopatas e psicopatas inteligentíssimos nos mais altos cargos de poder e confiamos a eles voluntariamente as mais importantes decisões coletivas. Oras, será que eles são desservidos intelectualmente ou destituídos de uma razão concreta? Ou os ingênuos somos nós? Será que não temos estado por demais distraídos, acomodados, inconscientes e cegos pela razão, que é apenas “uma” função do nosso aparelho psíquico, deixando os outros determinarem por nós o que é cientifico ou não, o que nos faz bem e o que pode nos fazer mal e assim por diante? Por que será que não podemos confiar em nossa própria experiência interior? Experiência essa (e seu partilhar comunitário) que é a essência tanto de uma ciência, quanto de uma religião com consciência e não de obediência passiva, meramente racional ou literal, conforme Buda já prescrevia no século VI a.C:
“Não creia em coisa alguma com base na autoridade de mestres e sacerdotes; não creia em coisa alguma pelo fato de lhe mostrarem o testemunho escrito de algum sábio antigo. Aquilo, porém, que se enquadrar na sua razão e depois de minucioso estudo for aceito pela sua experiência, conduzindo ao seu próprio bem e ao de todas as outras coisas vivas, a isso aceite como verdade e por isso paute sua conduta.” (Buda)
Assim precisamos olhar também para dentro de nós mesmos, para o nosso interior, tornando-nos cientistas do nosso universo intrapsíquico a fim de desenvolver a nossa própria consciência, assumindo responsabilidade por essa vida, estando presentes e aprendendo a criar conexões sensíveis de nossa mente com o nosso coração, integrando os conhecimentos vindos de fora com o autoconhecimento que vem de dentro.
É preciso mudar o modo de pensar em ciência, pois precisamos aprender a pensar com o coração, com sensibilidade e respeito a diversidade humana e das espécies. Pois a razão, o intelecto e a fé na própria ciência ou religião podem ser usadas tanto para o beneficio e avanço da humanidade quanto para manipular mentes através da falsa propaganda, como vem ocorrendo ao longo da história. Infelizmente, temos sido ensinados a crer e a pensar de modo heterônomo, exigindo o mesmo dos demais, porém, sem passar pela autonomia de nossa experiência direta, nos tornamos meros replicadores inconscientes de interesses de outrem e avessos a pensar fora da caixa.
Ou seja, deveríamos nos preocupar menos com os “moralismos universais” de supostas provas da ciência ou mesmo de literalidades religiosas, e mais com a aplicabilidade das coisas em nossas próprias vidas de modo sensível aos demais! É preciso avaliar conceitos, fatos e fenômenos de mente e coração abertos, resgatando o sentido do amor em nossas próprias experiências, conhecimentos e saberes, a fim de partilhá-los com os outros. Como diria Pierre Levy em sua inspirada obra de rara sensibilidade espiritual a respeito da importância do autoconhecimento:
“A moral clama por obediência. A liberdade, pela ética. A moral julga baseada em critérios e regras universais, antes de provar, reconhecer e compreender. A moral quase sempre se volta contra o próprio ser. Dela nos servimos para culpá-lo, julgá-lo, bloqueá-lo, humilhá-lo. Ora, tudo o que diminui o ser humano é ruim. Os preceitos éticos só têm sentido para uma personalidade aberta, em contato consigo mesma, consciente de suas emoções, em formação, em crescimento. Para outros, e talvez para a maioria das pessoas, as máximas éticas são regras morais, barreiras de prisão. Nada têm de libertador. A ética é o veículo que conduz à felicidade. Exige-nos a plena consciência. Lembra-nos sem cessar: ‘Esteja presente!’. O desenvolvimento pessoal é o primeiro degrau, o meio e o fim da ética.” (Pierre Levy, O Fogo Liberador, 2000)
Pois sem a inteligência sensível do amor que precisa ser desenvolvida interiormente assim como a espiritualidade, o que temos sido convenientemente muito pouco incentivados a fazer no sentido do autoconhecimento e da educação da nossa consciência, já que isso não interessa aos poderes dominantes, corremos sérios riscos de acreditar em falsas ideologias disfarçadas de discurso religioso ou cientifico como tantas vezes têm ocorrido ao longo de nossa história, tão notadamente naqueles períodos e momentos mais obscuros da nossa marcha civilizatória.
É preciso refletir seriamente que a cisão cartesiana de Descartes ao invés de ter sido considerada uma abstração útil e simples diferenciação, acabou sendo tomada como “real”, capturando assim subjetividades e as enrijecendo até os dias de hoje num falso dualismo. Entretanto não existe uma separação real entre o mundo objetivo e subjetivo que é a crença central em que se ergueu a ciência moderna, do mesmo modo que não existe uma realidade que seja independente do observador. Isso foi um falseamento da realidade! Uma obliteração da verdade, com consequências gravíssimas para a humanidade e para o planeta, pois é a partir daí que rompemos com a nossa dimensão interna, afetiva, valorativa e humana e passamos a causar danos e a progredir cientifica e tecnologicamente destruindo o próprio meio em que vivemos com base naquilo que talvez tenha se tornado ao longo do tempo um dos maiores engôdos da história da humanidade desde o seu marco na Idade Média, que é essa ilusão de separação!
Essa vem sendo também a ideia central que tem incentivado fundamentalistas e dogmáticos de todas as partes em duelos de objetivistas versus subjetivistas: desde religiosos fanáticos e fervorosos; a acadêmicos teoristas, pretensos donos do saber com suas contradições racionalistas relativistas; até os cientistas ortodoxos e reducionistas de todos os tipos, com os seus sectarismos e intolerâncias; todos uns contra os outros em suas cansativas e dualísticas disputas de poder e de ego para ver quem detém a primazia da “realidade” para sobrepujar e impor aos demais.
É nesse lastro que ainda hoje se discute Ciência versus Deus, Ciência versus Religião, Religião A x Religião B, Filosofia x Ciência, etc. Discute-se até se a Psicologia é científica mesmo ou não. Ou se a Psicanálise de Freud é cientifica ou não. Se as Terapias Complementares, Reiki, Florais, Fitoterápicos, Astrologia, etc., são válidas ou não. Se a Regressão de Memória ou o método de Terapia de Revivência Transpessoal é aceita pelos Conselhos ou não, e assim por diante. Todas essas discussões de modo geral estão ligadas ao dualismo cartesiano, a separação de um mundo natural, físico, biológico, objetivo, quantitativo de um mundo subjetivo, mental, qualitativo, da consciência e da experiência interior.
E infelizmente, muitos cientistas materialistas em suas versões repaginadas atuais ainda não evoluíram para além da Idade Média e continuam brigando com a religião e a filosofia pela supremacia da realidade. Seus métodos dão a aparência de ter avançado, mas a crença central que os move continua sendo a mesma, congelada no tempo medieval e polarizada numa dicotômica ilusão de objetividade que ignora a fé em seus próprios critérios e alegações conceituais e subjetivas, ou seja, suas próprias crenças, interpretações e percepções de como deva ser a realidade imputadas em seus experimentos a que atribuem provas de caráter universal e de irrefutabilidade, para assim continuarem buscando explicações causais somente no plano material, delirando em uma espécie de “esquizofrenia do avesso”, que é como deveria ser chamada essa perigosa doença do cientificismo materialista de quem atribui realidade causal apenas ao mundo físico, empestando o mundo de construções artificiais nocivas ao meio-ambiente, aos seres que o habitam e aos ecossistemas em geral.
Numa visão de ciência mecanizada como essa, que exclui parte fundamental do que nos define como humanos: nossas emoções e sentimentos, nossa cultura, contexto e historicidade, acabamos todos coisificados, podendo ser padronizados, condicionados, pasteurizados, usados, quantificados e subvertidos em máquinas de consumo e descarte.
Além do que, o discurso cartesiano de prova e comprovação, disfarçadamente impositivo e já bastante enraizado em todos nós, tende a nos exigir passividade e negação de nossos próprios sentimentos e experiências pessoais, favorecendo todo e qualquer tipo de regime autoritário.
Assim, se no passado e ainda mais atualmente a intolerância religiosa baseada em fé cega em escrituras tem causado guerras, genocídios, conflitos e terríveis violências ao redor do mundo, a ciência cartesiana desde seu advento na Idade Média em sua fé cega numa suposta objetividade não ficou atrás e tem colaborado para sofisticar e validar outros conflitos, armar as guerras e dotá-las de tecnologias mortíferas, hoje capazes de destruir toda a vida planetária com o simples apertar de um botão!
“Nos últimos séculos nós temos desenvolvido uma ciência, uma tecnologia fabulosas, espetaculares, maquininhas fantásticas! Porém, não houve o correlato desenvolvimento das dimensões psíquica, emocional, valorativa, ética, noética e o despertar espiritual. Temos uma tecnologia e ciência incríveis, sem alma, sem coração, sem espírito, como uma espada de Dâmocles presa por um fio de cabelo sobre a cabeça da humanidade” (Roberto Crema, Liderança no Séc. XXI, 1998)
Ademais, convém ressaltar que a metodologia cartesiana mesmo em suas derivações atuais ainda nos impõe uma ciência sem consciência e essa tem sido a crítica sistemática do filósofo David Chalmers ao chamar atenção para o fato de que as explicações reducionistas quase sempre no âmbito da ciência cognitiva ou das neurociências desviam-se da verdadeira natureza do problema da consciência e da experiência interior, pois não existe nenhuma função cognitiva que explique diretamente a experiência consciente e nenhum fato do mundo, mesmo num nível microfísico, implica necessariamente na produção de estados conscientes. A consciência está para além de sua base física e o problema da experiência consciente requer algo mais do que explicar o desempenho de suas funções. Ou seja, a experiência interior não pode ser reduzida aos processos cerebrais das neurociências e da biologia como insistem seus defensores.
Portanto, o paradigma cartesiano falhou em dar conta do conhecimento pelo fato de que ignorou o sujeito e sua dimensão subjetiva e a Modernidade da ciência é a “morte do sujeito” em nome de uma racionalidade que vem negando todas as dimensões humanas que estão para além da razão: “a psíquica, a emocional, a valorativa, a ética, a noética, a espiritual”, conforme terminologia do psicólogo e antropólogo Roberto Crema.
É por isso que pensadores contemporâneos como Pierre Lévy, consideram que se faz urgente inventariar todo o conhecimento, rumo a uma nova epistemologia da ciência, pois com o advento da própria pós-modernidade e a desconstrução do modelo cartesiano, associadas às descobertas da física quântica como a influência do observador nos fenômenos investigados, além da maior interatividade entre o pensamento do ocidente e do oriente, a noção de método científico tradicional ruiu ainda mais concretamente e hoje seria mais correto se falar em termos de múltiplos métodos de se fazer ciência, abrindo espaço a todo um campo novo de vivências, conhecimentos e saberes.
E é a luz dessa abertura e livres de todo e qualquer tipo de reducionismo que veremos como podem se inserir e como podem ser investigadas, testadas e referendadas mais sistematicamente as experiências espirituais e de estados alterados de consciência como as próprias revivências transpessoais, assim também como, as terapêuticas complementares, as práticas contemplativas, intuitivas, ancestrais, etc., enfim, todas àquelas práticas cuja validação dependa da primazia da experiência interior dentro da perspectiva de uma ciência mais ampla. Uma ciência com consciência.
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