Quem parte do principio genérico errôneo ou absolutista de que o coletivo seja mais importante que o individuo, ou, de que a maioria esteja acima da minoria, viola o principio da equidade e, portanto, vilipendia a justiça, pois não demonstra a disposição para reconhecer o direito de cada qual consoante ao que as diferentes circunstâncias de vida podem exigir.
Se o individuo não está acima da coletividade, esta também não pode estar acima do individuo, pois, é preciso haver reciprocidade e equidade para haver Justiça. Não fosse assim, qualquer regime genocida estaria escusado pelas suas alegações de bem comum. Ou qualquer maioria estaria liberada para praticar a barbárie contra qualquer minoria.
O ideal de bem comum ou os ideais coletivos tornam-se meras abstrações desalumiadas na mente de alguém ou de algum agrupamento de influência perniciosa se não levarmos em conta as particularidades de todos os implicados, até porque existem disparidades enormes no poder de persuasão e patrocínio de narrativas na sociedade conforme as veladas ambições e as patentes conveniências das elites em modelar o pensamento das massas de acordo com seus próprios interesses, historicamente discrepantes entre suas alegações e a prática.
Dai a importância da preservação dos direitos naturais, bem como, dos direitos negativos que são aqueles relacionados a não ingerência de uns em relação ao direito de outros, e que referem-se a garantias fundamentais que tem como objetivo a abstenção de governos, corporações ou de terceiros em violá-las. Por exemplo, se você acha que a sua vida ou saúde corre risco de contágio viral devido a sua fragilidade, crenças ou falta de conhecimentos imunitários de como se cuidar, você tem todo o direito de se mascarar, ficar em casa e se vacinar, mas nunca de obrigar outros a fazê-lo sem o consentimento deles. Nem mesmo alegando pretensa cientificidade, pois, a verdadeira ciência não é absoluta, nem universal ou totalitária; a não ser nas ditaduras ou tecnocracias que corromperam o fazer cientifico na história, vide a abominável "eugenia" e outras absurdidades que já foram consideradas hegemônicas no meio acadêmico e cientifico, gerando leis e politicas desumanas.
Se a equidade adapta a regra a cada caso específico a fim de torná-la mais justa, então somente se pode chegar a decisões mais corretas avaliando cada caso e se privilegiando a intercomunicação entre as partes. E para se chegar a isso, qualquer coletivo vai precisar ser considerado em termos das tipologias de individualidades, vivências e características dos seres que o constituem. O ser humano singular precisa ser incluído, respeitado em sua dignidade pelo seu vivido e não obliterado em nome de uma coletividade, ordem, grupo, partido, organização, corporação ou governo.
Esse respeito à alteridade e a singularidade, portanto, é mais provável de acontecer em tomadas de decisões de poder mais descentralizado, ético interlocutivo ou afeito ao diálogo e não ao contrário. Quanto mais concentrada e distante da realidade dos envolvidos uma cúpula de poder estiver para decidir sobre suas vidas, maiores são as chances dessa cúpula cometer erros crassos, praticar abusos sistemáticos e propagar deslizes de estupidez ou recair na tirania em sua soberba intervencionista.
Narrativas, ideologias e “ciências” (ou, na realidade, posturas cientificistas, supremacistas absolutistas, ou falsamente universalistas) que em nome do bem de uma coletividade subvertem a ética de reciprocidade mais elementar, ou seja, desejam impor aos outros suas arbitrariedades em detrimento as diferenças ou ao consentimento informado de indivíduos, não passam de engodos propagandistas, de apelos aos instintos mais baixos e as fórmulas fáceis, panaceias generalistas e quimeras ilusórias que exploram as vulnerabilidades mais fatais do ser humano que são tanto a sua falta de conhecimentos, quanto de autoconhecimento.
Um exemplo típico disso é a causa de uma minoria oprimida que muitas vezes pode ser muito procedente e justa, enquanto os seus excessos de reivindicação não. Uma causa nobre pode muito facilmente ser desvirtuada devido a sua imposição ideológica. A falta de consciência da centralidade das emoções em nossas relações e a negação do lado inconsciente de nossa personalidade faz com que as pessoas não reparem nas suas contradições e oscilem entre extremos repetidamente sem nem se aperceberem. E aí pode acontecer de uma vítima recair em vitimismo e até vir a se tornar opressora pela sua identificação inconsciente com a opressão. Toda a vítima mal resolvida com a sua história, ao ser egoicamente inflada por algum empoderamento artificial, propaganda de massa ou mística de grupo, pode se tornar um perigo em potencial para si e também para a sociedade.
O orgulho ordinariamente pode se camuflar de causa social a fim de disfarçar os aspectos repulsivos da pessoa, como o seu desejo de poder ou de ditar regras e expropriar os outros, ou ainda, a sua necessidade de controlar a vida alheia e até de falsear contrapesos para as suas desvalias mais íntimas. Investindo na boa imagem social de si, a pessoa vai revestindo suas tendências egoístas, ressentidas e totalitárias, tornando-se demagogicamente enrustida por alegadas “nobres intenções”.
A ilustre filosofa Simone Weil em sua análise crítica contra toda e qualquer a mentalidade totalitária já afirmava que a evidência histórica aponta que sempre que grupos de oprimidos passam a exercer algum poder sobre a sociedade, seja através de partidos, corporações, coletivos, sindicatos, etc., eles tendem a reproduzir os mesmos vícios do regime e da organização burocrática que pretendiam reformar ou destituir. Com isso, os abusados de outrora podem fatalmente acabar se tornando os abusadores quando chegam ao poder.
Nessa direção, alguns padrões se repetem seguidamente: O primeiro deles é o extrapolar do apelo a emocionalidades ou a vitimização para fazer chantagens contra o meio social e que acabam servindo para uma duplicidade ou duplo-padrão, que é se autopersuadir da certeza de suas próprias causas, bem como, para simultaneamente encobrir o próprio comportamento autoritário coercitivo. E aqui a característica típica é a inversão de valores entre os meios e os fins; ou seja, a incoerência demagógica entre a teoria e a prática que vão produzir uma série de outros ultrajes e injustiças contra terceiros. Isso ocorre porque a vítima que não superou o abuso ainda se identifica num nível inconsciente com o abusador e junto a outras vítimas ressentidas pode se converter muito facilmente num grupo perpetrador. Essas violações acabam resultando sempre num menosprezo pelo individuo, pois: “ama-se a diferença enquanto ideia ou estética, mas no fundo odeia-se o diferente ou o singular na prática, a ponto de coagi-lo se for preciso.”
E o pior de tudo é que quando detém de fato o poder, os grupos obviamente não tendem a trabalhar para diminuir o seu próprio poder e na medida em que a sua racionalização instrumental, organização desagregadora e constante centralização de poder vão crescendo, vai aumentando também a divisão, a violência e o caos que são as projeções externas de suas interioridades negadas, desordenadas psiquicamente, traumatizadas e dissociadas.
Todos os discursos revolucionários totalitários se aproveitam de vítimas com baixa estima querendo virar o jogo do poder para tornarem-se artífices de uma desforra e se locupletarem. É a cultura do ressentimento. A história mostra que indivíduos e grupos que visam à tomada de poder apenas deslocam de lugar os mesmos excessos e contradições que acusavam nos adversários. E o trágico é que nesse percurso de deslocamentos entre extremos, nessas inversões de papéis e meras projeções de idiossincrasias, a ética, o senso de justiça e o bom senso se perdem, pois todos se encontram em negação afetiva de seus traumas e recalques, carecem de autoconsciência, mas se acham cheios de razão e de justificativas contra a sociedade ou contra outro alguém ou algum grupo visto como adversário.
Os facciosos ficam tão absortos em sua revanche nos jogos de poder que confundem facilmente seus ressentimentos subliminares e ações contraditórias com as suas boas intenções, pois, psicologicamente não enxergam suas próprias cizânias, nem sua demagogia e hipocrisia, sendo a principal delas, como já foi dito, a de que na prática acabam esnobemente mais odiando oponentes enquanto alvos genéricos do que amando de fato as causas que tão fervorosamente dizem defender.
Portanto, basta seduzir os ressentidos com algum empoderamento para capturar suas subjetividades. E assim tem sido uma constante na história que o poder mais alto faz uma aliança falsificada com as camadas de baixo de desfavorecidos para controlar a maioria que fica no meio. Pressão de cima e de baixo, só mudando de tempos em tempos, o conteúdo simbólico para resgate dos oprimidos da vez.
E é por isso que se pode dizer, não sem certo assombro e lamento, assim como no dito popular sobre "a estrada para o inferno estar pavimentada de boas intenções", ou, nos alertas bíblicos sobre a regência do mal que opera do mundo espiritual subvertendo o plano terreno que, entre as elites (ou principados) e as massas (ou potestades), este mundo inferno tem estado historicamente repleto de salvadores auto persuadidos de suas melhores intenções. Entrementes, tutti quanti buena gente trazendo o inferno pra terra...
Ou ainda, em outras palavras, num sentindo mais psicológico e simbólico, o "inferno" interior das desordens psíquicas que cada um e muitos ainda não sanaram no seu íntimo se espalha enquanto realidade projetada para fora e maculada no mundo que utopicamente acreditam poder reformar sem precisar se dar ao trabalho de regenerar a si mesmos.
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