Egocoletivismo e a autotranscedência patológica



Egocoletivismo é o uso de uma causa social para encobrir motivações egoístas. É o autosserviço disfarçado de virtude, uma fórmula fácil, socialmente disponível e acessível de se iludir na tentativa de compensar o próprio complexo de insignificância ou de inferioridade.

Aquele que não integra a sua própria sombra acaba ocultando de si as suas próprias negatividades e sentimentos de menosvalia, de modo a só enxergar a sua história pessoal como lhe convém. Assim, só percebe a sua vida pela metade e torna-se tendencioso e ineficaz também para encarar com integridade as suas relações psicossociais e a própria história da humanidade. Por óbvio, menos ainda este individuo vai conseguir exercer um melhor discernimento pessoal para reconhecer a malevolência operando no sua vida e na contemporaneidade.

É por isso que a tragédia totalitária se repete: A equação de psicopatas no poder explorando a histeria das massas, manipulando a falta de consciência das coletividades e os sentimentos de inferioridade dos indivíduos, seu acúmulo de medos, culpas e ressentimentos, sempre prontos para serem requentados dentro do caldo cultural do materialismo dialético do momento.

Todo o culto coletivo patológico geralmente opera na exploração amplificada de vulnerabilidades de ordem emocional, seguidamente do medo, ou da culpa ou do ódio, todos dissimulados por alguma mistificação das melhores intenções.

No fenômeno do egocoletivismo ocorre a inflação do ego por algum ideal de bem comum para qual o grupo se autoconvence de suas boas intenções e ignora suas perigosas contradições. Entrementes, é quando acontece uma autotranscedência patológica em que o ego é amplificado artificialmente por um grupo, coletivo ou massa, seja esse baseado em crenças políticas, religiosas, científicas, etc., e que leva seus participantes a acharem que se opõem ao egoísmo quando na verdade apenas o mascaram e ocultam dentro do interesse de uma coletividade pactuante que precisa de um álibi eloquente para as suas transgressões dos direitos e da dignidade alheia.

Em geral, grupos formados por pessoas que ignoram que a sua mente encontra-se em estado psicológico dividido, carente, ignorante de suas desvalias, e que não só não reconhecem o perigo disso, como ainda se convencem de que seus nobres ideais justificam a censura e a violação contra terceiros estigmatizados que não compactuem com suas crenças grupais.

Na atmosfera egocoletivista as pessoas precisam persuadir-se de que têm direitos de violar outros em benefício do coletivo, por isso, ocorre uma maximização social do medo, da culpa ou do ressentimento que contribui para manipular a opinião pública. Eventos de grande comoção no imaginário social como crises, atentados e doenças são típicos exemplos que oportunizam a manifestação dessas mentalidades facciosas. Onde houver na sociedade uma exploração do medo visceral, da chantagem social que culpabiliza sempre os outros ou do ódio que segrega e tenta anular a diferença, ali está operando alguma forma vil e patológica de egocoletivismo.

Desse modo, esse sempre ocorre autojustificado por um sistema de crenças fechado, avesso aos questionamentos e ao confronto com o contraditório, e que apela à censura, aos slogans altamente emocionais e a uma racionalidade dissimulada que propagandeia boas intenções e ignora qualquer consequência nefasta de suas ações, as quais ainda podem ser atribuídas a terceiros que funcionem como bodes expiatórios. Aqui vale a máxima do homem revoltado capaz de tudo pelo poder: “Julgue-os do que você é, acuse-os do que você faz.”

A ignorância de uma psicologia profunda é um fator decisivo para o deslumbre coletivista que leva aos cultos malsãos, aos partidarismos passionais e as seitas fechadas de pensamento que podem se formar variando apenas conforme as tendências típicas dos diversos agrupamentos humanos. Todo egocoletivismo opera em detrimento ao jus naturalismo, ou seja, contra os direitos naturais do indivíduo que é a menor minoria existente, bem como, descumpre a regra de ouro das tradições que é a ética da reciprocidade.

A mentalidade de massa precisa caracterizar o indivíduo como egoísta na sua individualidade, como se o egoísmo não pudesse operar também na coletividade, o que, como estamos explicando, não só pode ocorrer, como também é possível constatar que as suas consequências são ainda mais avassaladoras, tal como revela a história de milhares de mortos por genocídios vinculados a ideologias coletivistas totalitárias.

Portanto, o egoísmo patológico não desponta tão somente na individualidade, mas também na coletividade. Por isso, o indivíduo não pode se dizer acima do grupo e nem o grupo pode se colocar acima do indivíduo, como as pessoas têm sido desastrosamente doutrinadas a pensar numa autotranscedência coletivista que sobrepõe o grupo ao individuo. Até porque se assim fosse, os regimes totalitários do passado deveriam ser escusados pelo seu ideal de bem comum promulgado pelos seus correligionários ensandecidos. 

Não obstante a isso, a não ser quando confundida por alguma ideologia em seu laivo totalitário, uma concepção mesmo alegadamente sendo cientifica e majoritária não significa que seja única, nem mesmo melhor e muito menos verdadeira. A história das ciências está repleta de exemplos nesse sentido como a eugenia que fez parte do pensamento dominante na academia e nas ciências, gerando politicas públicas nefastas em vários lugares e colaborando para a ascensão do Nazismo. Nenhum grupo, autoridade ou governo deveria sequer cogitar violar princípios básicos de direitos humanos ou vilipendiar a equidade entre individuo e coletividade se a sua militância tivesse a menor noção das tendências contraditórias de sua psique cindida, do lado sombrio de sua história precedente e das valiosas lições do conturbado passado belicoso da humanidade. Talvez a principal delas, a de que gente que manipula e busca o poder sem buscar uma autoconsciência correspondente é sempre um perigo para a humanidade, ou para qualquer comunidade, tornando-se provável flagelo ambulante tanto mais detenha poder. 

Finalmente, é preciso esclarecer que do ponto de vista de uma psicologia mais profunda que concilia a ciência psicológica e a tradição espiritual, não há oposição entre amor próprio e servir ao próximo. Não confunda uma autoimagem distorcida que pode levar ao egoísmo com buscar a autoestima que pode levar ao amor próprio. “Amai ao outro como a si mesmo”, lembra? A falta de autoconsciência leva as pessoas a cometerem muitos erros de percepção sobre amar e cuidar. Portanto, é preciso ponderar quanto ao autoengano de achar que só se serve ao outro por amor, pois tem muita gente servindo aos outros por medo de desagradar ou na tentativa malfadada de purgar culpas não reconhecidas, bem como, há muitos reivindicando privilégios sociais por ressentimento e fixados num vitimismo mesquinho.

E todas as relações tóxicas e sistemas opressores exploram essas mazelas humanas sob algum ideário de autotranscedência em que o ego se infla em nome de doar-se ao outro, ao bem comum, ou a uma causa coletiva. 

Egoísmo e egocoletivismo são extremismos comportamentais, na sua aparência opostos, mas similares em sua raiz subterrânea. São doenças da mente humana cindida, deludida e saturada de racionalismos, emotividades, tecnicismos, informações, desinformações... Mas demasiadamente carente tanto de amor genuíno, quanto de sabedoria e autoconsciência.

Então, vale um alerta aos navegantes, cuide muito para não se tornar um ajudante involuntário da maldade que opera no mundo. O ingênuo, o bonzinho ou o bem intencionado que nega a própria sombra costuma ser relativamente inapto para perceber a dissimulação do mal nas relações sociais. Por isso, não basta ser bom, é preciso buscar ser íntegro, justo, integrar psiquicamente luz e sombra num processo de ampliação da própria consciência, em que a ética e a sabedoria do amor crescem na medida em que você se autoconhece.

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