No filme de ação ciberpunk “Ghost in the Shell - A Vigilante do Amanhã (2017)" a protagonista é uma agente que possui um cérebro e sentimentos humanos no corpo de uma máquina e busca descobrir sua identidade enquanto lida com o fato de que suas memórias foram manipuladas pelos tecnocratas da corporação que a criou, ao passo que todos a sua volta parecem adaptados em se robotizar cada vez mais. O dilema existencial vivido pelos personagens do filme nos remete a cientistas brincando de deuses tiranos, fazendo experimentos com outros seres humanos e cruzando-os com robôs sem nenhuma preocupação ética com as violências perpetradas contra os envolvidos, pois, tudo se justifica pelas ambições tecnológicas, comerciais e corporativas do sistema dominante. Nesse enredo soturno, o aperfeiçoamento cibernético torna-se uma alternativa, tanto quanto uma compensação e substituição para a falta de aperfeiçoamento interior, moral, psicológico e espiritual de uma sociedade que vive num cenário futurista distópico, frívolo e cada vez mais artificial.
Até pelo seu título em inglês o filme lembra muito a interessante e controversa obra "O Fantasma na Máquina - Ghost in the Machine, (1967)" de Arthur Koestler, um intelectual húngaro nascido em Budapeste, ex-comunista arrependido, depois um tecnocrata convicto que já comentava na década de 60 sobre a ciência biológica de se modificar artificialmente o comportamento da população através da manipulação do RNA mensageiro (RNAm) que é o ácido ribonucleico responsável pela transferência de informações do DNA até o citoplasma. Ele cita experimentos nesse sentido em seu livro da década de 60, no qual faz uma análise brilhante do fracasso das revoluções secularistas, porém sem se aperceber vítima de seu próprio diagnóstico ao propor uma solução tão ruim quanto a do "homem revoltado". Isso porque o autor acaba se revelando crédulo numa mudança NÃO como se verifica na psicoterapia e na tradição, de dentro para fora, proveniente da escolha e esforço de desenvolvimento da consciência do indivíduo, ou de sua evolução pessoal, psicossocial e espiritual, mas, ao contrário, imposta de fora para dentro, por tecnologias de modelagem biológica das massas, numa pretensa tentativa de se corrigir a fatídica cisão entre razão e emoção no cérebro humano. Ou seja, basicamente o que ele defende é uma tecnocracia de controle da mente da população, e que para Aldous Huxkey e George Orwell eram seus maiores temores, como pode-se constatar em suas respectivas obras mais famosas: "Admirável Mundo Novo" e "1984", enquanto dois alertas de inquietantes distopias futuristas para a humanidade.
Mas Koestler minimiza ambas essas visões, propondo em oposição, a alteração da conduta humana por design biológico e controle da mente através do RNAm, citando e corroborando pesquisas nessa direção em seu livro, apesar de todos os alertas contrários, dos quais parece estar bem ciente. Conforme expõe:
“Em 1961, o Centro Médico de São Francisco da Universidade da Califórnia organizou um simpósio sobre “Controle da Mente”. Na primeira sessão, o Professor Holger Hydén, da Universidade de Goeteborg, provocou manchetes nos jornais de São Francisco, embora o título de seu trabalho altamente técnico – “Aspectos Bioquímicos da Atividade Cerebral” – não se destinasse a apelar para a imprensa popular. Hydén é uma das principais autoridades nesse campo. A passagem que provocou sensação é citada abaixo (...):
Considerando o problema do controle da mente, os dados dão origem à seguinte questão: seria possível alterar os fundamentos da emoção pela indução de alterações moleculares nas substâncias biologicamente ativas existentes no cérebro? O RNA, em particular, é o principal alvo de tal especulação, uma vez que sua alteração molecular poderia levar a uma mudança das proteínas que estão sendo formadas. Para modificar a ênfase, podemos enunciar a questão em palavras diferentes: os dados experimentais aqui apresentados fornecem meios de modificar o estado mental através de alterações químicas especificamente induzidas? Foram obtidos resultados que apontam nessa direção, e o trabalho foi efetuado pelo uso de uma substância chamada triciano-aminopropeno. (...) A aplicação de uma substância que mude a velocidade de produção e a composição do RNA e provoque alterações enzimáticas nas unidades funcionais do sistema nervoso central tem tanto aspectos positivos quanto negativos. Existem hoje provas de que a administração do triciano-aminopropeno no homem é seguida por um aumento de sugestionabilidade. Sendo esse o caso, uma alteração definida no cérebro de uma substância tão funcionalmente importante como o é o RNA poderia ser usada para o condicionamento. O autor não se está referindo especificamente ao triciano-aminopropeno, mas a qualquer substância que induza alterações de moléculas biologicamente importantes nos neurônios e nas neuroglias e afete o estado mental num sentido negativo. Não é difícil imaginar os possíveis usos que o Governo de um estado policial poderia fazer dessa substância. (...)” (pgs. 353 e 354)
Koestler como todo erudito e ideólogo que se preze tem uma perspicácia crítica bastante admirável. Sua obra "O Fantasma da Máquina" tem momentos brilhantes. Assim como Karl Marx fizera uma crítica ampla e em muitos aspectos bastante procedente contra o capitalismo, Koestler faz um diagnóstico muito pertinente do problema humano: a cisão entre o saber e o sentir. Porém, assim como Marx, pois ambos cindidos, também erra tragicamente na proposição de uma solução. Se o contraponto comunista ao capitalismo legou uma pilhagem de milhões de cadáveres para história recente da civilização, o entusiasmo de Koestler por uma terapia genética para curar compulsoriamente a dissociação humana não é menos desastrosa, pois, ainda reducionista e materialista em demasia. Enquanto Orwell e Huxley repudiaram o futuro de uma humanidade controlada por tecnocratas e cada vez mais desumanizada, Koestler fazendo vista grossa ao mito do prometheus, da criatura que se volta contra o criador, descarta as tradições que para ele se resumem as religiões organizadas, ao ópio das massas; e ignora completamente o problema complexo e multinivelar da consciência (cérebro x consciência ou hard-problem). Ele simplesmente não consegue se livrar do materialismo dialético de que provém sua filosofia a ponto de propor uma solução que não só é um perigoso redux biologicista para o dilema humano, como também é uma meta tirânica ou totalitária, devido a sua “licença poética” para o uso de tecnologias de controle comportamental das massas, mais uma vez, claro, e como não poderia deixar de ser, fantasiada das melhores intenções e floreada de inovadoras promessas de bem comum.
Tanto é assim que Koestler ainda acrescenta outro depoimento do referido simpósio de “controle da mente”, reiterado por efusivas e declaradas boas intenções. Afinal, tudo claro seria usado para um bem maior, para os poderes da luz e em prol do bem estar da humanidade:
(...) Deixando-se os detalhes técnicos de lado, as implicações são claras. Tal como qualquer outra ciência humana, a Bioquímica pode servir aos poderes da luz ou aos das trevas. Seus perigos são terrificantes, mas estamos interessados agora em suas possibilidades benéficas. Permitam-me citar outra passagem pertinente, de autoria de Dean Saunders, da Escola Médica de São Francisco, ainda no simpósio sobre o Controle da Mente:
A grande habilidade e engenhosidade tecnológicas do químico moderno forneceram ao médico e ao cientista médico uma abundante coleção de novos compostos químicos de variada e diversa estrutura que influenciam o sistema nervoso central para deformar, acelerar ou deprimir o estado mental e as características de conduta do indivíduo. Essa reunião enfatizou que muitos desses agentes químicos possuem uma ação altamente seletiva sobre partes particulares e separadas do sistema nervoso, de maneira a permitir, do exame de sua ação em homens e animais, uma disposição em ordem ou classe. Esses agentes químicos oferecem assim, por uma consideração das relações entre a estrutura química e a ação biológica, a possibilidade de fornecer uma vasta coleção de drogas que influenciam a atividade específica do cérebro. Na verdade, uma vez que tais agentes podem potenciar-se ou atenuar-se mutuamente, apresentam uma sobreposição de suas ações e demonstram uma polaridade em seus efeitos sobre o cérebro, fica sugerida uma possibilidade muito intensa da existência de uma gama inteira de agentes químicos que podem ser usados para o controle da mente na maioria de suas atividades. (...) Aqui, à nossa disposição, para ser usada sábia ou insensatamente, acha-se uma crescente coleção de agentes que manipulam os seres humanos (...) É hoje possível agir diretamente sobre o indivíduo, para modificar sua conduta, em vez de, como no passado, agir indiretamente sobre ele pela modificação do ambiente. Isso, então, constitui uma parte daquilo que Aldous Huxley chamou de “A Revolução Final” (. . .) (pgs. 354 e 355)
E então, acrescentando ao comentário de Dean Saunders, Koestler relembra o temor de Huxley para depois o relativizar:
“Tenho de fazer um comentário sobre o último parágrafo desta citação. Huxley era perseguido pelo medo de que essa “Revolução Final”, ocasionada pelo efeito combinado das drogas e dos meios de comunicação, pudesse criar “dentro de uma geração, pouco mais ou menos, para sociedades inteiras, uma espécie de campo de concentração indolor da mente, no qual as pessoas teriam perdido suas liberdades no gozo de uma ditadura sem lágrimas”. Noutras palavras, o estado de coisas descrito em Admirável Mundo Novo.” (pg. 355)
“Estou ciente de que as expressões “controle da mente” e “manipulação de seres humanos” possuem conotações sinistras. Quem controlará os controles, quem manipulará os manipuladores? Presumindo que tenhamos sucesso em sintetizar um hormônio que atue como estabilizante mental nas linhas indicadas, como poderemos propagar seu uso global, para induzir àquela mutação artificial? Deveremos enfiá-lo pela garganta abaixo das pessoas ou adicioná-lo à água potável? (...) Tal como o leitor, eu preferiria colocar minhas esperanças na persuasão moral pela palavra e pelo exemplo, mas somos uma raça mentalmente doente e, como tal, surda à persuasão. Ela foi tentada desde a época dos profetas até a de Albert Schweitzer e, como Swift disse, “temos a religião apenas suficiente para fazer-nos odiar-nos mutuamente, mas não a suficiente para fazer-nos amar-nos uns aos outros”. Isso se aplica a todas as religiões, teístas ou seculares, sejam elas ensinadas por Moisés, Marx ou Mao Tsé-tung, e o grito angustiado de Swift - “não morrer aqui enfurecido, como um rato, envenenado dentro de um buraco” - adquiriu uma urgência que nunca antes possuiu." (pg. 359)
Quando a cisão razão-emoção opera, a inteligência é obscurecida e a demagogia, a hipocrisia e a contradição patológica proliferam. Perceba-se que Koestler acredita que autoridades ou sumidades cientificistas - elas mesmas seriamente cindidas - juram poder corrigir ou controlar biologicamente a cisão de outros, coisa que não corrigiram nem em si mesmas... O que poderia dar errado?
Eu diria que para um intelectual brilhante como Koestler, esse cartesianismo beira a ingenuidade mais perversa e não passa de sintoma grave do próprio problema que ele mesmo reconheceu, mas parece não ter admitido em si: a sua própria divisão intrapsíquica; e que demonstra estar muito longe de saber as suas causas, ou de reconhecer em suas instâncias psíquicas e espirituais, ou ainda, a sua etiologia profunda. E, portanto, muito menos consegue ter a mais vaga noção de sua cura, remissão ou melhora genuína.
Somos seres cindidos, agônicos, mas se há alguma esperança para nós, ele reside em nosso interior, na vastidão de um inconsciente que insistimos em negar, mas que não cessa de nos atravessar e desafiar a despertar e a evoluir como seres humanos, através de uma busca sincera pela autoconsciência. Esse sim um caminho que respeita o nosso arbítrio e que, portanto, depende de nosso esforço e autodeterminação de melhora íntima para que a sociedade melhore a nossa volta. Pois, o oposto não tem dado muito certo... Até porque a nossa cisão interna nos leva sempre a sabotar as mudanças que aspiramos realizar no mundo (ou que exigimos dos outros), enquanto não as tornamos legítimas dentro de cada um de nós.
Então, se você quer mesmo mudar o mundo, mude a si mesmo. Essa tarefa já seria o suficiente. Não para alterar o mundo como um todo que você não controla, mas para ser um peso a menos, ou para fazer menos peso para a sociedade, pois a história está repleta de exemplos de como o mundo tem sido um inferno de ativistas sociais metidos a salvadores ou a vingadores. De massas indolentes em busca de mentiras reconfortantes ao invés de verdades reveladoras, e de gente que insiste em desviar o olhar de seu próprio interior e eximir-se de se curar de suas cizânias, o mundo já está farto!
O ser humano é agônico, sua "casa interna é dividida" e o sofrimento faz parte de sua vida. Essa é a primeira nobre verdade da tradição budista e que também está inscrita em outras religiões, como na visão cristã, onde isso está expresso na angústia de São Paulo Apóstolo que reconhece o dilema aflitivo do ser humano cindido ao afirmar: "Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero." Essa agonia da natureza humana em sua contradição de consciência também é propulsora de toda a genuína busca psicológica, existencial, religiosa e espiritual. Essa busca por sentido é, portanto, inerente a nossa condição humana, podendo variar enormemente em suas formas de vivência e expressão; não podendo ser reduzida a uma dimensão bioquímica e muito menos resolvida por ela.
Se tem algo que a tradição ensina, a história revela e os mitos nos contam é que a ilusão por facilidades exteriores (quimeras, panaceias, subversões do intelecto...) é a queda do ser humano. E o caminho menos trilhado: a jornada de autodescoberta, o seu potencial de redenção. Pois, se uma cisão é interna e o exterior coemergente é a sua projeção, então, é também lá no íntimo e no nosso ser mais profundo que essa cizânia precisa ser prioritariamente tratada, curada e consciencializada.
Portanto, vivente, desperte, olhe para dentro, cure-se, ame-se e esteja presente. Pois, nenhuma ciência genética, ideologia secular ou salvador religioso fará a sua parte por você. A interioridade exige uma outra ordem de ciência e que contempla múltiplas dimensões mais profundas de realidade, uma ciência da autoconsciência.
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