“Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque Tu estas comigo (...)”. Salmos 23:4
Atravessar a escuridão, o “vale da sombra da morte”, segundo expressão da tradição antiga, em certo sentido, pode nos trazer o entendimento de uma caminhada transcendente de aprendizado para o ego que sofre em direção à liberação gradual de seus apegos e obsessões pelas aparências, pelo ilusório e superficial e que deve ceder lugar a alvorada do ser mais profundo, real, autêntico.
Simbolicamente, a escuridão pode ser
interminável se houver fixação ou apego a ela, tornando-se habitual, corriqueira.
Seja lá o que nos prende a ela, ao nos acostumarmos, estagnamos.
É interessante,
pois, num paralelo, é muito comum negarmos ou racionalizarmos a dimensão
afetiva de nossas vidas, o nosso sentir, deixando a nossa afetividade de lado,
no escuro, na inconsciência do ser. É como se não quiséssemos tomar parte de
responsabilidade por essa dimensão de nossa existência, negligenciando suas
consequências, deixando que as emoções, afetos e sentimentos não reconhecidos conduzam
o curso do nosso viver, só que às escuras.
Assim,
emoções e sentimentos como o medo, a raiva, o ressentimento, a culpa, o orgulho,
fixam residência em nossas vidas, dominam nossas escolhas e configuram uma
força repetidora de padrões psicológicos que é implacável, nos prendendo a círculos
viciosos de uma escuridão que parece não ter fim, a não ser que nos defrontemos
com tudo aquilo que temos tentado evitar, nos tornando passageiros não inertes
a essa escuridade, a essa negação do sentir, até podermos contemplar a bendita
alvorada do Ser, nossa cura e aleluia.
Ao nos acomodarmos em lugares papéis que nos afligem ou alienam, nos tornamos repetitivos e dessensibilizados, mortificando a nossa alma, entrevando o nosso sentir. Devemos passar pela escuridão sem quedar nela, atravessá-la destemidamente, encarando o sentir, pois se a vida tem sentido, o sofrimento também pode ter o seu propósito. E, na verdade, um pode estar a encobrir o outro, pois o sofrimento sem sentido torna a vida um fardo difícil de suportar, um caos ilimitado, uma reprise infernal, uma escuridão sem fim e carente de significado. Ilude-se quem crê poder evitar o sofrimento, negando-o. Ninguém evita o sofrimento pela repressão ou fuga, mas somente pode criar a ilusão mental e temporal de que pode. E é o que mais as pessoas fazem na sua existência, passam vidas inteiras fugindo de si mesmas, do olhar para dentro de si próprias e contemplar o que há de luz, de sombras e de vazio no seu interior ou de suas almas. Eis a armadilha do materialismo, das aparências, ideologias e frivolidades, com todas as suas tentações e facilidades sedutoras, arrecadadoras de almas indolentes e ociosas, que não querem se ocupar a fundo das coisas do espírito. Somente quem encara as dores da alma pode ultrapassá-las. O sofrimento deve ser acolhido em certa medida para que sejamos passageiros, não residentes de seus mecanismos. Acolhe-se, aprende-se e se passa por ele. É preciso ser passageiro, transeunte no viver, no linguagear, no raciocinar, no emocionar e suas polaridades: positivas, e também negativas, que a maioria tem a vã pretensão de achar poder evitar, racionalizando-as, dissimulando-as, alienando-se, entorpecendo-se, esquivando-se, e até corrompendo-se, seja nos plano das ideias, ou das ações, recapitulando maus caracteres: a sombra não reconhecida e suas projeções.
A
verdade é que as emoções negativas fazem parte do nosso viver. Elas movimentam uma parcela significativa de nossas escolhas, atitudes e comportamentos e são comuns a
todos. O que varia é o grau de consciência íntima de cada um a respeito dessa psicodinâmica interior, sua linguagem e suas relações. Emoções como o medo, a culpa e o ódio são interferências no âmbito do
amor, nos impedindo tanto o autoamor, quanto um verdadeiro amor fraterno, que
não seja mera pose social ou demagogia, empregada para encobrir carências, na
mesma medida em que nos habituamos de tal modo a essas emoções negativas que passamos a protegê-las com orgulho, via
gratificações substitutas, e até num relativo prazer velado nesse sofrer, a
ponto de se ativar circuitos de recompensa no cérebro, como evidenciam pesquisas
em neurociências que revelam existir certo prazer na culpa. Entrementes, essas
emoções tornam-se tóxicas ao organismo, gerando doenças, desequilibrando a
química cerebral e fisiológica, podendo levar a intervenção medicamentosa. E, no
entanto, tratar esse complexo desarranjo implica mais do que apenas medicar-se,
pois a pessoa carrega inadvertidamente essas emoções e crenças malfazejas no
seu comportamento, em sua negligenciada dimensão psíquica e não só no seu corpo.
No
entanto, no ser psicologicamente dissociado, entregue a cisão mente e corpo
pelo racionalismo dualista, é comum que o orgulho e o preconceito formem um
ponto cego que não permite que a pessoa reconheça que pode inclusive ter prazer
em algo danoso para si, naquilo que não lhe faz bem e produz estagnação em sua
vida, levando-a a permanecer no escuro. Mas se tiver a humildade em admitir
isso e abrir-se para buscar a ajuda necessária, o caminho da cura pode ser
encontrado, pois é por onde a luz e o amor podem entrar.
Se
nos fixamos em lugares escuros que nos trazem aflição e insatisfação, andamos
em círculos. Negar o medo é deixar-se conduzir por ele. Negar a raiva, o
ressentimento, é mover-se por raiva e ressentimento. Negar a culpa faz com que
carreguemos a culpa em nossas relações. O medo leva a exorbitância de controle
e quem se excede no controle, não confia, não se entrega ao fluxo do viver, a
impermanência da vida, aos ciclos e mudanças de nossa existência, ao ser
transeunte. E tudo isso decorre de fixações ao passado, pela repetição de
condicionamentos. Prender-se ao passado é se ausentar, é ter preguiça de
existir e estar presente. Negar o passado é carregar o passado, é ser conduzido
pelo passado, pelos mitos, pela história e pelos clichês culturais.
Portanto,
se há algo lá no fundo de nós mesmos que deseja sincera e verdadeiramente sair dessa
escuridão, desse círculo vicioso, então deve estar ciente de que vai ser
preciso olhar firme dentro de si, tocar nas feridas para desvelar o seu próprio
potencial curativo interior e exercitar certas qualidades. Primeiro, a humildade em admitir a necessidade de
ajuda, em aventurar-se na busca pelos recursos internos e externos que existem
e estão a nosso dispor, desde que façamos a nossa parte, assumindo a parte de responsabilidade que nos compete e que não pode ser delegada a ninguém, pois Deus, a
Espiritualidade, a Vida, chame como quiser, ajuda a quem se ajuda. Depois, a persistência para permanecer no caminho,
a despeito de seus árduos testes, de todos os seus percalços e desafios
orientadores e transformativos, a nos oportunizar uma maturidade e crescimento
que não podem resultar só da simples mudança, mas de sua congruência a uma
continuidade ou perseverança. E, finalmente, pela amorosidade do olhar que abençoa
e suporta o processo acolhendo seus altos e baixos, as suas transições inolvidáveis
e as dores relegadas, correspondentes às exigências de assepsia e liberação das
chagas decorrentes das próprias feridas e mazelas dos bloqueios a serem tratados,
inconsciente adentro. A saber, essa presença depurativa, essa transformação só pode
operar e se realizar pelo mergulho abissal dentro do ser profundo, no passado,
na história ou na ancestralidade cósmica, em toda a sua profundidade e vastidão
inconsciente.
Nesse
percurso, tenha em mente, não existe passe
de mágica ou milagre fortuito,
mas sim, a magia do merecimento pelo
trabalho bem feito, o milagre da fé persistente de quem “crê para ver”, somada
aos corolários do esforço enérgico e as bênçãos do dever cumprido, de modo íntegro,
responsável e autoconsciente, intimamente ligado ao exercitar de um amar verdadeiro que nos permite
atravessar a escuridão rumo ao alvorecer, ao luzir do Ser Autêntico sobre a
nossa existência.
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