Conhecereis a ideologia e a ideologia vos alienará

"Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los em nós mesmos e nos outros." (Albert Camus)




Em psicoterapia, logo constatamos através da observação psicológica que o ser humano é ágil em mentir para si mesmo, seu lado racional dissociado do emocional o leva a fazer isso naturalmente, pois é da natureza da mente mentir a si mesma a fim de se proteger de suas vulnerabilidades afetivas, até mesmo usando como subterfúgio miríades de boas intenções, deslocadas das factualidades, podendo com isso dar vazão a uma série de mascaramentos e malevolências, ilusões que cedo ou tarde, se voltam contra a própria pessoa ou a sua volta, devido a sua inconsciência das relações de causa e efeito mais sutis e complexas, a ocasionar uma série de sintomas, manifestações e até desolações.

Nesse aspecto, o apego a uma “ideologia” vinda de fora não só NÃO corrige essa dissociação entre razão e emoção (consciente e inconsciente, bem e mal, direito e dever, vítima e algoz, dentre outras), e prefigurada em nossa biologicidade, historicidade e cultura, como a agrava, ou pior, a instrumentaliza, seja pelo viés religioso, cientifico, filosófico ou político, como temos visto muito seguidamente ao longo da história. Exemplos disso não faltam. Veja que do mesmo modo que se pode reconhecer benefícios na religião, também é notório que já se mentiu muito em nome de dogmas religiosos. E ainda se mente. Depois as mentiras passaram ao status de ciência, em sua negligencia contra a dimensão subjetiva do ser humano. Agora as mentiras da moda vêm em nome da ideologia política, quando essa ignora os fatos objetivos, criando um mundo de pós-verdades, ou de subversão cultural. É tanta mentira historicamente contada e aceita, que a verdade tende sempre a ser chocante, e, portanto, acaba sendo evitada a todo custo, negligenciada, e seguidamente, ocultada socialmente. Tal como convém a ambivalência humana a fim de evadir-se de suas vulnerabilidades e ignorância ou vazio existencial.

Ideologias partilhadas por grupos ou facções detentoras de um relativo poder ou penetração na sociedade tornam difícil a percepção de ilusões, malogros e até perversões, pois o amparo coletivo e o financiamento espúrio visando interesses escusos muitas vezes encobrem e incentivam a insanidade de seus participantes que encontram nisso um muito conveniente acobertamento para suas desvalias.

Onde houver muita “concentração de poder”, de lá provém o financiamento das ideologias e suas tragédias, pois facilmente as pessoas em sua inconsciência dissociativa e tendência a despersonalização se convertem em caixa de ressonância de interesses dominantes dos usurpadores que creem poder lucrar com a desgraça alheia. A história mostra, mas poucos aprendem, todos acham que se o seu partido estiver no poder será a solução, ou se a sua religião prevalecer, ou se a sua ciência prosperar… E assim por diante. No fundo, todo o ser humano tende ao apego ao poder, como um vício, seja pelo deslumbre ou ressentimento. É o DNA totalitário, uma herança transgeracional. Por isso, a necessidade do indivíduo assumir também a sua parte de responsabilidade em examinar o seu próprio comportamento ambivalente, ao invés de esperar apenas a salvação vir de fora, por meio de alguma doutrina, religião, ciência ou ideologia política.

Afinal, a ideologia pura e simples é sempre um conjunto de ideias dissociada dos seus resultados. Uma ideologia para se tornar válida não pode ser mera abstração, não pode ignorar a experiência e os fatos mais básicos, ou obliterar a dialética existencial e suas complexidades, nem muito menos subverter a realidade factual, objetiva, mesmo que essa seja apenas contingencial, não definitiva ou absoluta. Mesmo uma verdade relativa tem o seu momento de verossimilhança, seu contexto de veracidade, sua evidência, sua testificação e validade provisória. Um sistema de crenças que não se coloque à prova, que não promova a sua testagem e menospreze mecanismos dialógicos de autocorreção, é mais provável que seja um engodo ou uma fraude.

A ciência genuína praticada com consciência de interioridade é sempre uma forma de testagem empírica e uma busca sincera por equilíbrio entre a subjetividade e a objetividade, entre as crenças, teorias ou hipóteses e seus resultados práticos ou experimentais, num exercício dialético e de síntese cuidadosa entre o cruzamento das ideias com a sua aplicação manifesta e possíveis correlações, a fim de que se possa conferir a validação ou a refutação de seus pressupostos, em qualquer nível que seja: físico, mental, emocional ou espiritual, e, em qualquer quadrante de suas possibilidades interativas: interior, comportamental, cultural ou social.

Em termos psicológicos, convém dizer que a ideologia sempre parte de uma retórica, de uma narrativa, de uma metalinguagem, que pode ser mais ou menos conectada ou desconectada dos fatos e dados de realidade, principalmente, de suas consequências a terceiros e seus efeitos longitudinais. Sua vertente desconexa a torna similar ou predisponente a um quadro de psicose ou até de psicopatia e outras psicopatologias, pois seus agentes tornam-se distanciados dos perigos e prejuízos causados a outros pelo seu sistema de crenças e suas implicações. Tanto é que C.G. Jung, principalmente no volume 10 de suas obras completas, descreveu essa estirpe de doenças psicológicas e sociais como propulsoras de epidemias psíquicas relacionadas a estados de possessão ideológica, tecendo severas críticas a sistemas políticos coletivistas que esmagam o indivíduo e a sua livre associação social, por meio de coerções burocrático-estatais.

A possessão ideológica seria caracterizada como um estado psicopatológico em que determinadas ideias, crenças, propostas ou ideologias satisfazem aos anseios dissociativos da pessoa, polarizando o seu comportamento em um extremo doentio vitimista e que ativa núcleos de menor resistência em sua psique, compensando externamente seus padrões de inferioridade, inscritos em quadros de histeria e psicose, de modo que em nome de alguma causa que lhe convém, a pessoa não percebe a sua parcialidade insana, o seu sectarismo ressentido, nem muito menos as suas perigosas contradições e os seus malefícios, mas somente as suas boas intenções.

Infelizmente, na atualidade, ao contrário do que tentam aparentar, algumas teorias de viés social progressista incentivam esse estado de coisas, como se o individuo fosse uma folha ao vento das forças naturais e econômico-sociais, incapaz de encontrar sentido dentro de si e desenvolver maior interioridade, ou resolver intimamente as suas próprias dissociações afetivas e fragmentação, aumentando assim e ainda mais a sua tendência a voltar-se para fora, ao invés de buscar um equilíbrio dinâmico entre o seu ser interior e o mundo exterior. Desse modo, no intuito de escapar de seus próprios avessos e cizânias íntimas, a pessoa condoída acaba entregando-se as ilusões e mentiras que estejam em voga, como iscas pré-fabricadas e propagandeadas na cultura contemporânea, que vão fisgando e alienando a sua mente no reducionismo de discurso social de sua predileção. Sobretudo, narrativas que prometam um afável acolhimento coletivo, geralmente de gente fixada em algum papel de vítima, e que possibilite seus condutores direcionar a todos conforme seus interesses de poder. A pessoa se torna então um fantoche, uma marionete de um teatro de sombras, um joguete do sistema.

Aderir a coletivos ideologizados de fachada solidária é, portanto, uma tendência humana para escapar de suas próprias fragilidades psicológicas, a tentativa de fugir ao confronto de si e evitar encarar os próprios bloqueios afetivos, os próprios reveses, enredos dramáticos e as malicias não reconhecidas, pois é muito mais difícil e até mesmo mais trabalhoso buscar a singularidade, a honestidade e a autenticidade diante de movimentos de massa degenerados que vendem a mentira numa embalagem romântica, aprazível e de aura supra compensatória. A massificação é sempre mais acessível ao estado de espírito indolente, desvalido, recalcado e renegado de que partimos. Isso está nas entranhas anímico-espirituais dos seres humanos. Não é mero dilema intelectual. Trata-se de uma amálgama afetiva, moral e espiritual mais antiga que a própria humanidade e, por isso, sua força condicionadora e repetidora é, à primeira vista, tão tentadora, avassaladora e de fácil aderência.

Por isso, toda e qualquer engenharia social ou poder coercitivo centralizador tende sempre a induzir a uma espécie de hipnose coletiva, sedimentada pelo abuso doutrinário e mantida pelo assédio ideológico e suas chantagens emocionais, que partem da dissimulação de boas intenções ou de pretensos resgates históricos, mas que terminam subliminarmente ensinando as pessoas a se fixarem no lugar papel da vitima e a ignorarem parcialmente qualquer responsabilidade sobre si e suas dificuldades. Seviciadas e ensimesmadas em sua visão sectarista, as vítimas empedernidas ainda revoltam-se contra quem as contraria, a quem passam a encarar passionalmente como perpetradores, numa espécie de lógica subvertida. É assim que se fabrica cada vez mais regramentos sociais que incentivam as pessoas a mentirem a si mesmas, a acreditarem em direitos sem deveres, cada vez mais ignorantes de que “um direito gera a obrigação a um terceiro”, como bem dizia Simone Weil. Ensina-se as pessoas até mesmo a mentira de que elas têm o direito indefectível a serem felizes, como se não tivessem nenhum dever para consigo mesmas a esse respeito. As abstrações de empoderamento grupal estão tornando os indivíduos cada vez mais dependentes da aprovação de uma coletividade, sem personalidade própria, reféns do pensamento massificado, estereotipado. Gente cada vez mais despreparada para confrontar a si própria, para enfrentar o sofrimento inerente à condição humana e aceitar a realidade de que ninguém lhe deve felicidade. Afinal, ninguém pode te ajudar a curar as feridas que você cultiva culpando só os outros. Ninguém pode te amar em seu lugar se você mesmo não se ama. E muito menos, nada vai te libertar realmente, enquanto nem mesmo você consegue ser honesto consigo a respeito das fragilidades que te aprisionam, ignorando partes de si próprio, se rejeitando para aparentar ser o que não é, nem pode vir a ser, sem sofrer, ou seja, querendo ser pela metade, usando a falsa máscara de descoladinho para manter a auto adoração grupal compensatória que só te ilude e te engana, te fazendo de bacana, na real, massa de manobra.

Políticas públicas que incentivam a “vitimização” de seres humanos, via grupos de identidade, estão sempre explorando e culpabilizando terceiros, eximindo o sentido de responsabilidade individual, tanto de uns, quanto dos outros, criando uma abstração relacional que confunde os papéis vividos e subverte a ordem natural da vida em sociedade, de modo a criar tanto um embuste semiótico de pretensas culpas coletivas, quanto falsos direitos e falsas soluções, como “empoderamento”, ou “sororidade”, que nada mais fazem do que criar uma camuflagem enganosa para problemas emocionais a ser explorados por facções no poder e seus interesses, que então se põem a manipular as fragilidades psicológicas das pessoas e suas psicopatologias, ao invés de incentivar o seu devido tratamento ou consciencialização; o que, diga-se de passagem, acaba sendo muito mais uma escolha do que uma obrigação de quem quer que seja, e portanto, muito mais um dever do que um direito, pois há certa voluntariedade na prisão ideológica, e a mudança só é possível desde dentro, pela autoconsciência.

Assim, se a pessoa não reconhece a sua parte de responsabilidade no seu sofrer, se não confronta a si mesma, tampouco reconhecerá sentido no que está vivendo. Sem sentido, portanto, fica difícil suportar a vida, superar o sofrer, sair de uma crise e ser feliz. Resta deprimir-se ou revoltar-se. O que pode se tornar ainda mais dramático, se diante desse desafio existencial, a pessoa apelar transferindo a responsabilidade a outrem através da criação de um cenário ideacional, parcial, dissociativo, e que pode inclusive encontrar ressonância grupal junto a outras figuras fragilizadas que se encontrem em situação similar, preferindo a vitimização em detrimento a consciência de si, o que reiteramos, é o cenário típico das ideologias e grupos de viés social, a estimular dependências, ressentimentos e alinhamentos subversivos. Assim são criados os coletivos patológicos, insanos e suas epidemias psíquicas, agrupamentos trágicos e desastrosos para seus participantes e para a sociedade na mesma medida de sua abrangência e da predisposição de seus atores para atuar num teatro de fantoches.

Como relembra o psicólogo canadense Jordan Peterson em sua obra memorável 12 Regras para a Vida, fazendo referência simbólica a um célebre fantoche dos contos infantis: “o caos é o fundo do oceano aonde Pinóquio foi para resgatar seu pai do Monstro, o dragão-baleia que soltava fogo. Aquela viagem à escuridão e ao resgate é a coisa mais difícil que um fantoche deve fazer se quiser se tornar uma pessoa de verdade; se ele quiser escapar das tentações do engano, da encenação, da vitimização, do prazer impulsivo e da servidão totalitária; se ele quiser assumir seu lugar como genuíno Ser no mundo.”

Os contos, as histórias reproduzem os mitos, os arquétipos. Nós repetimos os mitos, e amiúde, as suas tragédias. E não paramos de reencená-los nem mesmo pelo seu conhecimento e interpretação, pois a dissociação e a fragmentação de nosso ser nos demanda algo mais, principalmente, a sermos verdadeiros frente o nosso viver: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!” (João 8:32); e então, integrar o nosso sentir e a nossa sombra, exercitando uma consciência de profundidade. Afinal, não há mudança ou releitura dos fatos sem mudança interior, não há separação entre aquele que percebe e o que é percebido, já que tudo se dá através do filtro de nossa própria consciência e suas instâncias, e que vão além do racional, envolvendo também, entrelaçamentos com o plano corpóreo, o afetivo, o anímico, o intuitivo, o imagético, o contemplativo, o espiritual…

Então, sejamos humildes, sejamos sinceros em nossa busca existencial, no confronto com a verdade, primeiro, encarando os nossos próprios mitos pessoais, assumindo responsabilidade pelas dissociações nossas de cada dia, pela nossa sombra e suas maledicências, o nosso sentir e suas polaridades, a nossa história ou memória interior, e que pode sempre ser recontada à luz de uma consciência presente, capaz de nos libertar desde dentro das matrizes ideológicas de sofrimento em favor da Essência que somos espiritualmente, nosso Ser radiante, nossa Voz mais profunda, nossa Fraternidade mais verdadeira, nossa íntima Redenção.

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