Do ativismo social à autoconsciência




"Livra-te desse desânimo, levanta-te e luta. Essa auto-piedade e auto-indulgência são indignas da grande alma que és.” (Bhagavan Krishna no Bhagavad Gita)

Se a sabedoria está em buscarmos distinguir entre a ação e a não-ação, conforme preconizado pela essência das grandes tradições espirituais da humanidade. E se a ética ou a virtude moral está em encontrarmos um meio termo entre a ação e a emoção, como já dizia Aristóteles, então fica difícil acreditar em ativismo social sem autoconhecimento ou no intelectualismo sem desenvolvimento afetivo, tendo em vista que precisamos antes e ao mesmo tempo nos ocupar com a nossas próprias contradições e exercitar uma consciência sensível e integralizadora que seja capaz de amar e se solidarizar buscando a pacificação dos contrários fundamentalmente dentro de si.

Portanto, sem a inteligência emocional, o sentir que nos conduz e nos liga com a inteligência espiritual, nossa dimensão de valores, de sagrado e de sabedoria amorosa, a única coisa que o intelecto dissociado faz é nos jogar no vazio existencial da nossa própria demagogia. E com PhD e tudo se for o caso como podemos constatar pela falência das utopias políticas, filosóficas, cartesianas e no niilismo predominante no pensamento ocidental.

É preciso ir além, acionar outras funções universais de nossa psique que não só a razão, ir consciência adentro, abrir espaços, novos caminhos interiores, acionar os circuitos da intuição, das emoções, do sentir, da imaginação, da quietude e do silêncio, então, em direção à ação social.

A primeira grande alienação do ser humano é a de si mesmo, pois é assim que nos rejeitamos, abandonamos, desamparamos, também rejeitando a nossa sombra, os nossos próprios avessos ou idiossincrasias, perdendo de vista o nosso potencial para a inteireza e para a prática de uma solidariedade mais genuína.

Optamos desse modo pela falta de aceitação de nossas negatividades devido a falta de coragem e honestidade em reconhecer o mal também como parte de nós mesmos, nos iludindo até as últimas consequências e mais além; mentindo para nós mesmos, negando os nossos próprios defeitos e traços fardos de caráter ou os aumentando e projetando nos outros porque isso é sempre o mais fácil de se fazer.

Entregues aos nossos conflitos internos e de relacionamentos, ou seja, aos nossos desafetos e dificuldades interpessoais que tentamos encobrir na mesma medida em que preferimos nos prender em idealizações de perfeição, vamos exigindo demais de nós mesmos e dos outros, sem nos perceber cada vez mais queixosos, vítimas e terceirizadores de responsabilidade.

Outrossim, também quando preferimos permanecer demasiado relaxados, “de boa”, distraídos, inertes, acomodados, embotados. Ou vivendo “sedados”, seja por medicação, drogas ilícitas, televisão, mundo virtual, jogos, fofocas, futilidades, enfim, vícios e compulsões de qualquer tipo, tudo o que estiver ao alcance e disponível para não termos que nos aperceber de nossa parte de responsabilidade pelo que vai mal em nossa vida e a nossa volta. Tudo para não sentirmos, principalmente, para não estarmos presentes. Temerosos até mesmo da quietude, evitando todo e qualquer tipo de solitude.

Usamos se preciso toda a racionalização e erudição que estiver ao nosso alcance para continuar fugindo de nossos afetos e sentimentos ruins, de nossa sombra, do que nos desagrada e é conveniente evitarmos, soterrando com pretextos, ilações, preconceitos, justificativas, teorias e mecanismos de defesa (até mesmo os ditos científicos) tudo o que simbolize alguma ameaça as nossas crenças mais obstinadas, não importando o quão egóicas ou limitadoras elas sejam, pois em sua defesa nos obrigamos a banir todo e qualquer vestígio ameaçador (que noutro viés poderia ser liberador) para a nossa inconsciência, sempre, claro, ignorando que as fronteiras criadas as quais nos apegamos mais atrelam do que separam, mais recalcam do que resolvem, mais engrossam os tabus pessoais e coletivos do que nos libertam ou transformam.

Assim sofremos de uma ilusão de separação, vendo tudo de fora, sob o véu dicotomista da razão, cindidos entre o nosso mundo interno que permanece ignorado e atônitos com o que acontece a nossa volta, no exterior que não queremos ver como espelho, de modo que nos mantemos apartados de nós mesmos, bloqueados afetivamente, divididos internamente e polarizados numa base de inconsciência negativa, carente, que insistimos em não querer enxergar, não sentindo, nos ausentando de nossas próprias vidas.

E o pior: consideramos essa uma condição individual e social “normal”, apenas porque estamos habituados a isso, porque nos é propagandeado assim, já que o sistema se aproveita de todas essas nossas fraquezas íntimas de modos que nem sequer queremos imaginar, e também porque de nossa parte convém nos acomodarmos, pelo menos até nos defrontarmos com algo que nos chacoalhe por inteiro ou abale nossas rígidas estruturas, aquelas mesmas que teimamos em fingir ser sólidas e inexpugnáveis.

E assim só enxergamos a metade da realidade. A metade que nos convém. Enquanto os corruptos, sociopatas e psicopatas chegam ao poder e saqueiam as nações, a maioria quer ir levando a sua mesma vidinha normal de sempre, ou seja, sem mudar a si. Talvez a espera do herói, do salvador... Ou dos vingadores quem sabe, dado a cultura do ressentimento e de vingança em que vivemos.

A delusão é sempre o golpe que aplicamos em nós mesmos achando que podemos escapar do nosso lado escuro. Aos arquétipos inconscientes que se movimentam em nossa sombra, em nossa cegueira perceptiva, interessa iludir para manter a si mesmos e seus complexos, que também são os nossos complexos e assim reencenamos com eles mundos de dores e sofrimentos. Divididos. Fragmentados. Da ilusão a desilusão, sucessivas vezes... Até o dia em que exaustos pela “eterna insatisfação” finalmente venhamos a admitir a necessidade de todo o trabalho integrativo de tomada de consciência interior, aceitando unir pela prática gradativa e sistemática a razão ao sentir, as emoções, a sombra, ao inconsciente, ao silêncio e ao servir.

No entanto, a maioria só quer mudanças desde que não tenha que se envolver e assumir responsabilidade, mas imediatamente exige ou espera que os outros operem mudanças em suas vidas, espera-se até, contra todas as probabilidades, que os demagogos e corruptos mudem e os sociopatas e psicopatas que enganam e se alternam no poder, aliviem para toda a gente, como se não dependesse de nós, ao menos em parte, aprender a não esperar tão passivamente (ou reativamente) se deixando dominar ou iludir por eles... servindo as forças a que eles servem como voluntários inconscientes, seja pela complacência ingênua que ainda os defende, seja pelo inativismo ou inoperância, ou ainda, através do ativismo "reativo" radical...

Esse ocorre quando bradamos contra eles nas ruas, na internet e noutros meios como se não bocejassem contra tais formas batidas e previsíveis de manifestação que são sempre o outro extremo do nosso "voluntarismo" conivente com o sistema quando esse nos convém ou favorece e que teimamos em não enxergar no dia a dia. E assim revoltamos-nos contra os corruptos da esquerda, conclamando ao poder os da direita, ou invocamos a troca de uma ditadura por outra: militar, populista, corporativa? Quem sabe alguma nova versão repaginada?

Voltados apenas para o exterior, ignoramos que os totalitarismos se constroem, se renovam e sobrevivem de nossa cegueira interior, de nossa percepção errônea, de nossa prepotência irrefletida, do nosso vitimismo, de nossa divisão interna e do nosso apego racionalista às ideologias, aos conflitos de polaridades, onde na versão sócio-política, ora somos situacionistas, ora oposição, esquerdistas ou direitistas, nos digladiando, trocando acusações, empurrando as responsabilidades de um lado para o outro, a despeito de que a sombra da corrupção seja parceladamente de todos nós em maior ou menor medida. Só ignora isso quem ainda está no “raso” e não oportunizou-se tomar a coragem de "encarar-se" e ir mais a “fundo” no autoexame de sua própria consciência.

Enfim, bem rápido e urgente exigimos mudanças sociais... dos outros, claro. Mas o pior cego é o que não quer se ver. Pois, é pela nossa sombra que nos atingem.

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